São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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o que 67 tem a dizer a 97

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Nossas memórias de 30 anos atrás são sobretudo em branco e preto. Não porque os brasileiros fôssemos mais maniqueístas então, mas simplesmente porque faltavam ainda cinco anos para os televisores nacionais começarem a se colorir. Era, por exemplo, em branco e preto que se assistiu, em 1967, na TV Excelsior, a "Redenção", a mais longa telenovela do país. E foi também em branco e preto que os brasileiros acompanhamos, pela primeira vez a sério, dois grandes conflitos armados no noticiário televisivo: a Guerra da Biafra e a dos Seis Dias. Sem falar no Vietnã, que entrava em seu "crescendo".
Cada qual é um marco do pós-Segunda Guerra. Uma, principiada em maio desse ano, quando uma minoria étnica, a dos ibos, tentou conseguir sua secessão da Nigéria, foi o sinalizador não apenas de que a África se tornaria uma zona permanente de desastre, como também de que a partir de então as guerras, cada vez mais, contraporiam miseráveis a miseráveis. Que no conflito biafrense se inaugurava um novo padrão no qual o lado central não era econômico, político ou social, mas sim étnico, é uma constatação que só recentemente começou a parecer óbvia.
Quanto à Guerra dos Seis Dias, entre árabes e israelenses, ela garantiu, por sua vez, que nas décadas seguintes o Oriente Médio viria a ser, para usar um lugar-comum, o barril de pólvora do planeta. Ambas as guerras foram acompanhadas, até mesmo no Brasil, pela TV de uma forma como nunca antes ocorrera e como raramente se repetiria. Muitos dos que beiram os 40 têm como sua primeira lembrança de política internacional as crianças africanas com olhos saltando mortiços de cabeças desproporcionalmente grandes para seus minúsculos e frágeis corpos subnutridos.
Não foi só com isso, porém, que se fez 1967. Eclipsado pelo seu celebérrimo sucessor imediato, o 68 das revoltas estudantis, do AI-5 e da Primavera de Praga, esse ano ímpar, quando a Revolução Russa comemorava seu cinquentenário sem saber que sua criação, a URSS, não era imortal, quando a Guerra Fria estava bem no meio e quando se lançavam fundamentos centrais da época em que seguimos vivendo, corre o risco de não receber a devida atenção. Pode-se, contudo, argumentar que, se 68 foi um ano espetacular, seus espetáculos revelaram-se, a médio prazo, fogos-fátuos. O que, com menos estardalhaço, ocorreu no ano anterior pode ter acumulado um resultado mais notável.
A política parecia ser o grande desafio do cinema e, assim, enquanto Jean-Luc Godard cuidava de satirizar, em "A Chinesa", os filhotes da classe média que se julgavam revolucionários (e ensaiariam mesmo sua quase-revolução um ano depois), Glauber Rocha realizava entre nós uma cinematografia do Terceiro Mundo, tematizando carnavalístico-alegoricamente as contradições do Brasil e de sua intelectualidade em "Terra em Transe". Paralela e convergentemente, Zé Celso dirigia, no Oficina, "O Rei da Vela", recuperando o teatro relativamente esquecido de Oswald de Andrade, com sua maneira peculiar de ver o país, uma maneira que, desde então, tornou-se praticamente hegemônica nas artes. E Caetano Veloso e Gilberto Gil apresentavam "Alegria, Alegria" e "Domingo no Parque", inaugurando o tropicalismo.
Nas nossas vizinhanças, o colombiano Gabriel García Márquez consolidava o "realismo mágico" e o boom latino-americano da literatura com seu "Cem Anos de Solidão", ao mesmo tempo em que o romantismo revolucionário do continente chegava ao fim com a morte, na Bolívia, de Che Guevara, o guerrilheiro imortalizado no mundo inteiro com seu pôster na parede de dois em cada três dormitórios estudantis.
E entre tapas e beijos, ou melhor, entre guerras e shows de rock que reafirmavam o triunfo da contracultura, entre ofensivas americanas no Vietnã e protestos contra elas nos campi dos EUA, a ciência marcava dois pontos decisivos: o primeiro transplante de coração, realizado pelo médico sul-africano Christian Barnard (o maior saldo da medicina entre a invenção da penicilina e o mapeamento genético do ser humano), e a pílula anticoncepcional que, fazendo a balança do sexo -inclinada antes para a reprodução- pender preponderantemente para o lado do prazer, desencadeou a revolução sexual de modo tão indiscutível, que foi necessária a aliança entre o vírus HIV e o neomoralismo das feministas americanas para começar a detê-la.
Tudo isso aconteceu em 1967, um ano no qual, parafraseando Wordsworth, "estar vivo era glorioso, mas ser jovem era o próprio paraíso". O presente ano vai ter, no mínimo, que começar a trabalhar dobrado para, daqui a três décadas, merecer ser lembrado de forma semelhante.

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