São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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o que 67 tem a dizer a 97

MAURICIO STYCER
DA REPORTAGEM LOCAL

Para muitos protagonistas daquele ano, evocar 1967 é hoje um exercício difícil, que combina felicidade com melancolia.
As lembranças, às vezes confusas, são embaladas por sentimentos contraditórios, como a nostalgia de uma época especial, a frustração por aqueles dias terem anunciado algo que acabou não se concretizando e a expectativa otimista de que as lições de 67 possam fazer algum sentido em 97.
Diante da pergunta feita nesta página -"O que 67 tem a dizer a 97?"-, a maioria dos entrevistados tende a responder positivamente, mas com um pé atrás.
Talvez porque tenha passado o ano de 1967 entre os EUA e a França, terminando a sua tese de doutorado sobre o francês André Gide, o escritor e ensaísta Silviano Santiago tem alguma facilidade para refletir sobre o significado desses 30 anos no Brasil.
"67 tem muito a ensinar a 97, mas a pergunta que faço é se 97 quer aprender. O ano tem a ensinar sobre a ambição artística: eram brasileiros que queriam consertar o país. Havia uma certeza sobre a construção do futuro, sobre a construção da própria vida. Havia um espírito individual de rebeldia, mas com vistas ao coletivo", diz.
Prossegue Silviano, que tinha 31 anos em 67: "As contas foram acertadas: 96 fecha definitivamente a década de 60, e 97 se anuncia como saída para uma coisa nova. É um ano de tábula rasa: não há como não construir alguma coisa. Mas essa construção, a vejo sem a reserva ética que veio dos 60. Ela se perdeu, para o bem ou para o mal, e a juventude de hoje, destemida, acha que não precisa aprender".
A ambição artística que Silviano viu em 67, tem um outro nome, segundo o cineasta Cacá Diegues: "Naquela época havia o que Lina Bo Bardi chamava de 'febre do fazer'. Essa é a única coisa de 67 que poderia ser reproduzível hoje".
Em 67, com 27 anos, Diegues deu início às filmagens de "Os Herdeiros", filme concluído em 68 e só liberado pela censura, com dez minutos de cortes, em 71.
Em 67, diz, apareceu "o filme brasileiro mais importante já feito", que é "Terra em Transe". "É um filme que muda tudo: muda a maneira de ver o Brasil e a maneira de ver o cinema", diz Diegues.
O cineasta não vê muitos sinais positivos na produção cultural da segunda metade desta década, mas se diz com esperanças e profetiza: "As coisas chegaram num nível de mediocridade, no Brasil e no mundo, que algo novo vai acontecer".
Também otimista, mas um pouco mais cético, o escritor Sérgio Sant'Anna acha que, nos anos 90, o marketing passou a ter mais importância do que as obras em si.
Sant'Anna tinha 25 anos em 67 e dois anos depois estrearia com "O Sobrevivente". Diz: "67 tem muito a dizer a 97, mas o que tem a dizer é inútil: as pessoas deveriam criar as coisas pela criação em si. Os Beatles, Glauber, Zé Celso eram caras que estavam com tesão grande de fazer. Hoje, a armação do efeito que determinada obra pode causar precede o tesão".
O papel que o chamado mercado ocupou nos últimos 30 anos é uma questão que aflige em particular os artistas plásticos brasileiros que viveram 1967 de forma intensa.
Considerado um dos introdutores da arte pop no Brasil, rótulo que rejeita, Wesley Duke Lee acha que 67 não tem nada a dizer a 97. "Nos anos 60, houve uma ilusão tremenda de que o país ia deslanchar. E não deslanchou. Sentia-se que era possível tocar o país. Minha obra reflete muito isso. Hoje, estou parado, desencantado", diz.
Inspiração de Kassel
Wesley tinha 35 anos em 67, ano em que, na 9ª Bienal de São Paulo, foi apresentada uma grande mostra de arte pop norte-americana.
"Acreditei piamente, nos anos 60, que havia uma verdade a ser descoberta. A inspiração dos artistas dos anos 70, 80 e 90 vem direto do catálogo de Kassel, completamente dissociada da realidade brasileira", diz, numa referência à famosa Documenta, uma bienal que se realiza em Kassel, na Alemanha.
Menos cético, mas igualmente crítico em relação a 97, Rubens Gerchman reconhece que os artistas, em 67, pensavam no mercado, mas não só: "Havia uma consciência do país. Era como se houvesse um projeto cultural, sem haver um, de fato, feito na base do entusiasmo e da vontade", diz.
Uma das grandes lições de 67, segundo Gerchman, foi a integração de diferentes áreas culturais. Aos 25 anos, em 67, o artista apresentou na exposição "Nova Objetividade Brasileira", no MAM, do Rio, "A Bela Lindonéia" -obra que serviria de inspiração para uma canção tropicalista de Caetano Veloso, interpretada por Nara Leão.
Como Gerchman, o cineasta Júlio Bressane, que em 67, aos 19 anos, dirigiu seu primeiro filme, "Cara a Cara", acha que a grande qualidade daqueles anos era o que chama de "contradição complementar". Em outras palavras, "a coexistência de todas as contradições num mesmo ato".
Bressane gosta de dizer que "todo quadro novo tem a frisa na moldura antiga". Em 67, em seu filme de estréia, reconstituiu clichês de "Terra em Transe", de Glauber, exibido no mesmo ano.
O filme de Glauber também é citado pelo poeta Waly Salomão -21 anos em 67- como a grande contribuição daquele ano aos dias de hoje. "±'Terra em Transe' é um escândalo, é uma pedra de tropeço e uma pedra de toque. Até hoje é uma visão fecunda do país", diz.
Para o diretor teatral José Celso Martinez Corrêa, "67 tem tudo a dizer a 97". Naquele ano, Zé Celso, então com 30 anos, estreou sua famosa montagem de "O Rei da Vela", no Teatro Oficina.
"Todo o rebolado que tenho que fazer hoje é consequência de uma fidelidade a um jeito de ser e estar no mundo, daquela época, um estado de descolonização e uma noção de eternidade presente."
67 é aqui
Para um artista, ao menos, o dramaturgo Plínio Marcos, o ano de 97 se parece muito com o de 67.
Há 30 anos, quando Plínio tinha 31 anos, estreava sua peça "Navalha na Carne", tendo a atriz Tônia Carrero no papel da prostituta Neuza Sueli. Hoje, com Vera Fischer no mesmo papel, a peça é filmada por Neville d'Almeida.
"Para mim, 67 tem tudo a dizer a 97: cadeias lotadas, desemprego, prostituição: todos esses assuntos que aparecem nas minhas peças de 30 anos atrás permanecem vivos, porque o país não evoluiu, Aliás, piorou: hoje há uma prostituição infantil gritante", diz Plínio.

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