São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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Olhos redondos

ARTHUR OMAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quase ao final de "A Chinesa", Véronique, estudante de filosofia e aspirante a terrorista, sai do apartamento branco, onde passou a maior parte do filme em discussões teóricas com militantes maoístas, e parte para sua primeira ação política concreta, mas mata o homem errado. Tudo é mostrado friamente, sem envolvimento. Aos olhos de hoje, é como se víssemos piscando na tela do "notebook"' a mensagem familiar "error, error". Véronique se dá conta do engano, retifica os planos, localiza o homem certo e o executa. É o primeiro assassinato de uma série que deveria levar ao fechamento das universidades. Fim do experimento. Teria Véronique dado o que Chou En-lai chamou de "o grande salto para a frente"? Ela própria reconhece que não, ao refletir novamente sobre seus atos. Nova volta no parafuso. Seis meses depois, maio de 1968.
A cena corre à distância, friamente, sem drama, sem gerar qualquer emoção social, contra ou a favor. Ao contrário, fazendo da indiferença perceptiva um fator a mais de jubilação para o espectador e reforçando com sutileza o princípio de construção de todo o filme: a simulação de um exame científico, no qual o Um se parte em Dois, conforme a dialética revolucionária da aventura chinesa de então. Em Godard, a duração da imagem dissolve espontaneamente os conceitos e tudo pode se transformar perigosamente no seu contrário, sem aviso prévio, pelo simples gesto de ser enunciado e a fricção natural com a imagem. O espectador vai mudando lentamente de posição, sem perceber que tudo passa pelo controle do seu fascínio.
Vamos diretamente ao ponto: "A Chinesa" é um mistério, quase no sentido medieval do termo, ou uma moralidade protestante, na qual os personagens pouco psicológicos representavam disposições abstratas como a Fortuna, o Pecado, a Virtude, o Vício, a Astúcia etc. e se combinavam em demonstrações de estilo didático. Godard oferece um modelo para armar, com seus novos tipos, reunidos no palco de um apartamento, ou, como se dizia, em uma célula maoísta. Mas não se trata de um aparelho real, onde se encenaria a experiência concreta de indivíduos aristotélicos. As figuras aqui são suportes deliberadamente simplificados para experimentações com o imaginário marxista e suas palavras de ordem, seus slogans, sua moralidade, seus heróis teóricos e o embate de idéias, em que se entrelaçam a luta de classes na França e no mundo.
Assim, cada qual com suas razões, temos o revisionista reflexivo, a camponesa inocente que vem se prostituir em Paris, a moça burguesa em busca de uma ruptura radical, o suicida dostoievskiano obcecado pela morte, o jovem poeta revolucionário e teatral, entremeados com figuras saídas da realidade, mas que passam a funcionar como alegorias interagindo com os personagens, como o militante negro que representa a si mesmo e o Terceiro Mundo, ou o conhecido intelectual Francis Jeanson, antigo simpatizante das FLN e professor, na vida real, de Anne Wiazemsky, tentando dissuadi-la do ato terrorista com um discurso em estilo realista.
Mistério e esplendor de 1967, ano godardiano que iria culminar com "Weekend", outro ritual, agora oposto, com acidentes rodoviários e canibalismo simbólico. "A Chinesa", como nos mistérios medievais e em todo o cinema de Godard, não visa apenas operar idéias em um indivíduo, mas tem a propriedade de criar em torno de si uma comunidade, ao se constituir como filme-acontecimento e objeto do desejo, ícone irresistível de uma contemporaneidade enigmática e a ser dominada.
Na sua estréia no Festival de Veneza, "A Chinesa" foi exibido ao ar livre, numa tela gigante que balançava ao vento forte dos canais, como a vela de um navio, perturbando a visão das imagens e tornando o som quase inaudível. Mesmo assim, o efeito foi siderante, porque era um filme para se estar junto, um evento, um filme que instaura um lugar, que marca a atualidade com sua aura. Talvez essa seja a vocação de qualquer cinema, colocar todos no mesmo barco, velas enfunadas. Aí, então, as opiniões podem começar a se dividir. Um se divide em dois.
O próprio Godard registra a consternação da embaixada chinesa com a existência do filme, a irritação dos estudantes marxistas-leninistas, o desconforto da direita do "Figaro" e, pode-se dizer, que cada intelectual acrescentou sua pequena dose de equívoco na interpretação do filme, de tal modo que o destino crítico da obra se tornou o fruto da contribuição milionária de todos os erros, parodiando Oswald, uma proeza que nenhum outro filme da história conseguiu. E até hoje, fazendo 30 anos nesta noite holderliniana, o filme ainda põe em xeque o pensamento que dele se acerca.
O que é "A Chinesa", afinal? De que trata "A Chinesa"? O que deseja "A Chinesa"? Construído em torno de um núcleo fugidio, é um filme-catástrofe teórico (com todo o respeito...), em que os conceitos da esquerda marxista se apresentam estilhaçados, com seu eco distorcido devolvido por um cinema claríssimo, que provoca estranheza e gera a crise como estética radical, e não que Godard não tivesse aderido a eles, ao contrário, ele também fazia parte, e todos nós. Mas a máquina do filme é mais complexa e atua ao menos em dois lugares ao mesmo tempo: no tema proposto, que é a política, e num outro lugar. Um segredo, esse outro lugar, um terreno vago, no qual não se entra diretamente, mas feito para ser abordado por aproximações instáveis.
Em "A Chinesa" há o ardil do tema, o tema como armadilha para os olhos. O tema que deriva e foge entre os dedos à medida que o filme avança, e tudo aparentemente se solidifica em torno de questões de política, de táticas e estratégias, de respostas políticas concretas à pergunta leninista "que fazer?".
Fazer um filme em que a política aparecia daquela maneira foi talvez a grande provocação de Godard, o seu lance mais radical, um gesto puramente de artista. O paradoxo, a estupefação. Tudo ali é explícito, tudo é tão refletido e simplificador, tão ideologizado, tão simuladamente pedagógico, tão unidimensionalmente revolucionário, que um outro lugar vai progressivamente se escavando, o lugar da lógica que estrutura isso tudo, o lugar da ironia, da mecânica do pensamento em estado puro, o lugar onde se fala sobre o trabalho que é estar no mundo.
Aí, "A Chinesa" adquire uma condição nova. E o seu fascínio é sem cessar. Muitos dos personagens políticos ali analisados caíram em desgraça, a maioria das urgências não se coloca mais para nós, quase todas as questões teóricas que ali se debatiam foram varridas pela história. No entanto, o filme permanece intato no seu estatuto de objeto do desejo, há algo em "A Chinesa" que não se esgota, porque ele foi construído como um permanente paradoxo, e podemos vê-lo hoje com a mesma estranheza do primeiro dia, quando foi projetado na vela enfunada do navio imóvel da praça principal. Porque esse navio, que somos nós, continua flutuando, e nada foi feito como "A Chinesa".
Quando Glauber Rocha se casou com Juliette Berto, atriz do filme que representa a camponesa, escreveu, com solenidade, numa carta de julho de 1973, ainda inédita, para Fabiano Canosa: "Casei-me com 'La Chinoise', Juliette Berto. Desta vez é para sempre...".

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