São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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Alegorias do caos

MODESTO CARONE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Trinta anos depois, "Terra em Transe" mantém todo o impacto da obra de arte poderosa. A avaliação feita a seco não tem o menor propósito de fugir à discussão sobre as fragilidades do filme. Continua lá, recalcitrante, a colcha de retalhos que se estende de Resnais a Antonioni, passando pelo primeiro Godard e outros mais; o trêmulo existencialista ainda mela a angústia do personagem Paulo Martins, cuja versalhada vai a reboque dos rompantes líricos de qualidade do poeta Mário Faustino; a temática agrária via CPC (Centros Populares de Cultura), historicamente inovadora, soa desenxabida diante da atualidade muito mais consistente do Movimento dos Sem Terra -ao mesmo tempo que uma orgia de apartamento promovida pelo caixa-alta Julio Fuentes parece o estágio primitivo da perversão no ambiente "high-tech" e mais real do mundo globalizado.
Não faltam nem mesmo tiradas do tipo "todos nós marchamos para o abismo", "revolução não se faz com lágrimas", "os ricos nunca pensam que um dia podem acordar pobres" ou "as massas devem invadir os palácios" -esta última, por sinal, involuntariamente derivada de outra que o dramaturgo alemão Georg Buechner usou com a autenticidade da descoberta por volta de 1834.
A questão, porém, é que em Glauber Rocha as coisas dão a impressão de andar a contrapelo, e o resultado, às vezes, costuma ser -e neste caso é mesmo- um encontro estonteante de paroxismo e senso da verdade. Paulo Emilio, que cortava no lugar certo, afirmou que em Glauber "as evidências de insensatez acabam testemunhando um cintilante equilíbrio". É claro que ele se referia ao cineasta e não ao teórico e estrategista político que acabou dizendo "bom-dia" a cavalo. Seja como for, vale lembrar o que Gilda de Mello e Souza explicou num ensaio breve e exemplar dedicado a "Terra em Transe": "A força de Glauber não consiste em exprimir um pensamento discursivo, e sim na maestria com que usa imagens para criar um universo plástico de equivalências, um sistema de metáforas e alegorias".
Creio que foi por essa trilha que Ismail Xavier concebeu um trabalho do maior interesse sobre a fita de Glauber -"Terra em Transe: Alegoria e Agonia". Para funcionar como conhecimento crítico, a alegoria pressupõe a existência de elementos dispersos num universo fraturado e descontínuo.
Este é o cenário varrido pela câmara de Glauber, em que os "flashback" se embutem, o tom e a pose shakesperianas se misturam à batucada de morro, o hino fascista e o ruído de tiros disputam espaço com Villa-Lobos, Verdi e "O Guarani", e o cinismo acanalhado do burguês cruza com o desespero do revolucionário -tudo isso em lugares recorrentes, nos quais a esculhambação dos dirigentes no trato com o povo corre paralela à consciência culpada do intelectual, os excluídos aqui incluídos dão a medida áspera da sua presença, e o amor coexiste com a desfaçatez e a traição.
Seria o caso de perguntar como essa multiplicidade se articula numa fita que é, por todos os títulos, esteticamente íntegra. Talvez a chave do enigma já tenha sido encontrada por Paulo Emilio. Ele percebeu na obra de Glauber a emancipação dos seres e das coisas do mundo real "para se transformarem em peças de um imaginário particularizado". Acrescenta no entanto que "quando a imaginação glauberiana trabalha no genérico, ela se enraíza na realidade". Vem certamente daí o conteúdo de verdade que a forma deste filme extraordinário transmite.
Pois a rajada de tiros e discursos e sua infinita agonia existem e existiram de fato -o que nossa história comprova. Mas não acho que a proeza de Glauber deva causar mais admiração que o necessário: se (como diz mestre Antonio Candido) o poeta árcade de Minas atirou uma ninfa no Ribeirão do Carmo e isso deu certo, como não iria acontecer coisa semelhante ao caos nacional, tratado como foi pelas mãos de um artista excepcional?
Enquanto o cinema exigente continuar existindo, "Terra em Transe" vai comemorar vários outros 30 anos de vida.

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