São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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Luta entre radicais e moderados impede ajuda humanitária

TAD SZULC
DO "INTERNATIONAL PRESS SYNDICATE"

A Federação Internacional das Sociedades Cruz Vermelha e Crescente Vermelho relatou que as rações alimentares na Coréia do Norte caíram para um nível quatro vezes inferior ao que é normalmente considerado essencial para uma população saudável.
A ração diária individual de grãos foi reduzida de 400 gramas para 100 gramas (a fornecida nos campos de refugiados da ONU na África é de 625 gramas).
Andrew Natsios, ex-administrador assistente da Agência norte-americana de Desenvolvimento Internacional, que cuidou dos programas de alívio emergencial da fome durante o governo de George Bush (presidente dos EUA entre 1989 e 1992), escreveu no início do mês que "as evidências comprovam que a Coréia do Norte tem pela frente uma escassez significativamente mais grave do que aquela que levou à morte de 1 milhão de pessoas na Etiópia em 1984-85".
O governo de Pyongyang esforça-se para aumentar suas exportações metalúrgicas, atrair capital de investimento e, em outra iniciativa inusitada, vender sua dívida de US$ 3,2 bilhões a bancos internacionais, com grande desconto.
Kim Jong U disse em Davos que os compradores da dívida poderiam utilizar moeda local para pagar os trabalhadores norte-coreanos empregados em projetos de investimento estrangeiro na zona econômica de livre comércio de Najin-Sonbong, de 1.300 km2, logo ao sul da fronteira chinesa e a leste da russa, em lugar de trazer mais divisas ao país.
Foi ainda mais uma "primeira vez" significativa no trato da Coréia do Norte com os países capitalistas, ao qual soma-se seu compromisso com um índice de lucratividade de 14%.
Moderados contra linha dura
Deixando de lado as perspectivas terríveis de mortes em massa devido à fome, é também o futuro político da Coréia do Norte que está em jogo, e os alimentos fazem parte dessa equação.
A presença altamente visível de Kim em Davos e a primeira apresentação norte-coreana formal nesse fórum capitalista tiveram um significado importante. Deixaram entrever que os "moderados" em Pyongyang ainda têm mais força do que os representantes da linha dura, que se opõem a quaisquer contatos com o mundo externo, seguindo a linha dos preceitos de auto-suficiência defendidos pelo "amado líder" Kim Il-sung, morto em julho de 1994.
À medida que é possível discernir tendências no regime norte-coreano, muitos especialistas estrangeiros pensam que Kim Jong-il, o "Querido Líder" e filho de Kim Il-sung, transferiu responsabilidades de planejamento de políticas para os comunistas "moderados" -mais jovens e que acreditam que seu país não poderá sobreviver para sempre completamente isolado.
Mas Kim Jong-il ainda não foi nomeado secretário-geral do Partido Comunista nem presidente do país, como era seu pai, embora se preveja que assuma esses cargos em abril e julho, respectivamente.
Enquanto isso, é possível que ainda não se encontre no comando total da política nacional. É possível que o poder ainda esteja sendo exercido por uma liderança coletiva de composição nebulosa, que supostamente inclui os chefes das poderosas Forças Armadas. Nesse sentido, o futuro de Kim Jong-il também está em jogo, assim como o de seu país.
Selig S. Harrison, um dos maiores especialistas norte-americanos em Coréia do Norte, diz que "dentro do regime há um conflito político intenso entre a velha guarda ortodoxa e a geração mais nova de políticos reformistas pragmáticos. Kim Jong-il desempenha um papel de mediador, mas, de modo geral, é identificado com os pragmáticos".
Os "pragmáticos" seguem adiante com as políticas de liberalização. O economista Kim sentiu o ambiente reinante quando participou da reunião anual em Davos pela primeira vez, em 1989, para ter uma idéia de como tratar com capitalistas; sua visita passou despercebida.
O próximo passo foi a criação da zona de livre comércio de Najin-Sonbong. Najin é um porto no oceano Pacífico, com potencial de acelerar os embarques e desembarques oceânicos na região, e até agora já recebeu mais de US$ 100 milhões em investimentos.
A queda da União Soviética, antes fonte vital de apoio econômico para a Coréia do Norte, e uma série de desastres naturais, entre os quais as inundações mais recentes, aceleraram todos esses esforços.
Reação
Os representantes da linha dura pareceram reagir em setembro passado, quando um submarino transportando comandos sabotadores emergiu ao largo da costa sul-coreana e foi capturado. Mais uma vez a diplomacia norte-americana conseguiu um quase milagre, ao convencer os norte-coreanos, em uma dúzia de reuniões sigilosas, a divulgar, em dezembro, um pedido de desculpas pelo incidente do submarino -embora a Coréia do Sul tenha se queixado pelo fato de o pedido ser dirigido ao mundo em geral, não a Seul.
Foi nesse momento que a crise da fome lançou uma sombra escura sobre o horizonte norte-coreano. Pyongyang exigiu a emissão de licenças de exportação (para as 500 mil toneladas de alimentos de que precisa imediatamente) para as empresas americanas com as quais vinha negociando um acordo de permuta, segundo o compromisso assumido anteriormente por Washington. Exigiu que Washington honrasse sua obrigação de "reduzir as barreiras ao comércio e aos investimentos".
Mas, com a entrada do novo ano, ambos os lados pareciam estar perdendo controle de suas próprias políticas. Pyongyang, provavelmente sob pressão da linha dura, negou-se a participar de reuniões previamente programadas em Nova York sobre acordos futuros de paz até que saísse a liberação dos alimentos.
A administração Clinton, sob crescente pressão sul-coreana para negar comida à Coréia do Norte, visando forçar a queda do regime, não reagiu.
Em meados de fevereiro começou a se delinear um impasse perigoso. Pyongyang não pode retroceder na questão das licenças de exportação de alimentos e das negociações, para que a linha dura não se oponha a todas as políticas "pragmáticas".
A administração americana enfrenta forte oposição republicana no Congresso à idéia de socorrer os "comunistas norte-coreanos".
Enquanto isso, a economia norte-coreana, que encolheu 30% desde 1990, se encontra em queda livre -e o espectro da fome se espalha pelo país. Em termos pura e cinicamente políticos, os "pragmáticos", possivelmente incluindo o próprio Kim Jong-il, se vêem ameaçados de derrota total pela linha dura, se não conseguirem garantir a entrega da comida.
Cenários
Quais seriam as consequências de uma vitória da linha dura?
Em termos gerais, diz Selig Harrison, "os elementos ortodoxos na liderança norte-coreana sairiam fortalecidos. O resultado final pode muito bem ser uma instabilidade crescente, com consequências incalculáveis -incluindo fluxos maciços de refugiados em direção à Coréia do Sul e ao Japão e uma guerra civil que poderia extrapolar em confrontos militares entre as Coréias do Norte e do Sul, com eventual envolvimento das forças americanas".
(TS)

Tradução de Clara Allain

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