São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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Chique é andar na rua sem medo

GILBERTO DIMENSTEIN

Autora do best seller "Chic", a crítica de moda Glória Kalil, acompanhada de dois amigos, assistiu em Nova York, no início dos anos 80, a um show do cantor Bob Marley.
Eles deveriam ter suspeitado quando o táxi que os levou ao teatro Apollo, localizado na rua 125, saiu em disparada antes de fechadas as portas do carro. Seria um começo de uma desagradável noitada no Harlem.
Sentados na platéia, os três brasileiros -os únicos brancos- viraram alvos, num tiroteio de bolas de papel molhado. Saíram dali antes de acabar o show, procurando táxi nas ruas desertas. Viam a miragem do táxi em cada carro que passava em alta velocidade.
Um motorista se apiedou e aceitou levá-los para fora do Harlem, onde conseguiriam se virar, protegidos.
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Glória Kalil escapou de virar estatística do Harlem; nos bons tempos, berço do jazz, onde habitavam estrelas da produção intelectual negra.
Para medir essa violência, pesquisadores fizeram uma comparação aparentemente absurda. Levantaram qual a expectativa de vida daquele bairro, comparando-a com a de Bangladesh, um dos países mais miseráveis do planeta.
O Harlem levou a pior, tanto os homicídios e guerras de gangues; quem tinha condições, mudava-se, agravando ainda mais a degradação.
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Desde 1994, a polícia jogou duro, combateu o tráfico, desmontou delegacias corruptas; as igrejas se mobilizaram, as escolas promoveram programas contra a violência. Estimulados com a ofensiva, a população, acuada pelo crime organizado, informava às autoridades onde se escondiam os delinquentes.
Como em toda a cidade de Nova York, a criminalidade despencou, e logo apareceriam os resultados.
No início do ano passado, o comércio começou a ser revitalizado, recebendo grandes lojas, videolocadoras, restaurantes, gerando empregos. Empresários reformam casas de jazz, explorando a mística local.
Esse movimento de euforia ganhou um título: Renascença do Harlem, referência ao período cultural de enorme atividade artística que veio depois da obscura Idade Média.
Aquele mesmo teatro que assustou Glória Kalil e, no passado, lançou grandes nomes do jazz, é hoje um pacato local, que recebe batalhões de turistas europeus e japoneses.
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Boa lição: a transformação do Harlem revela que o Brasil não vai obviamente eliminar a violência das ruas, uma das pragas nacionais, mas vai, com o tempo, controlá-la como se fosse diabetes. Desaparecia o ambiente de guerra civil não-declarada.
Assim como existe conhecimento científico necessário para se controlar a inflação (o que parecia impossível entre nós), a tecnologia para segurar a violência nas ruas vem sendo aprimorada. É só uma questão de vontade.
Responsáveis por segurança pública no Brasil estão cada vez mais antenados sobre essas experiências de Nova York, onde se misturam ação policial, projetos comunitários e planos assistenciais.
São Paulo sai na frente com o projeto de "Tolerância Zero", inspirado em Nova York; isoladamente não funciona, mas é um passo no caminho correto da pacificação da sociedade desde que respeitados os direitos individuais.
Aumenta nas conversas de gente comum a sensação de que a guerra não está perdida e de que dá para retomar as cidades.
Sinal do avanço foi o endurecimento contra o porte ilegal de arma, aprovado semana passada na Câmara dos Deputados. Uma das razões da queda de homicídio em Nova York foi o desarmamento.
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Aumenta o número de idéias corretas e criativas. A Prefeitura de São Paulo quer empregar mendigos, promover torneios de futebol para meninos de rua e deixar centros de lazer abertos 24 horas.
No Rio, escolas de computação são instaladas nas favelas, atraindo os jovens e tirando-os da rota do crime organizado.
Maior estrela do mundo virtual, Nicolas Negroponte soube da experiência, ficou entusiasmado e se dispõe a ajudar o projeto. Ele comanda, nos Estados Unidos, um dos mais badalados laboratórios de informática do mundo.
Há duas semanas, ele dispensou pomposas autoridades internacionais que o visitavam para dar atenção ao responsável pelas escolas de computadores nas favelas, um rapaz chamado Rodrigo Baggio.
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O aprofundamento do debate sobre segurança, passando da histeria para a reflexão em torno de experiências bem-sucedidas, indica que a violência vai cair no Brasil. Assim como a inflação caiu porque aprendemos a combatê-la. Cura-se violência como curam-se epidemias.
Até porque é uma extraordinária bandeira dos políticos. Este ano tem eleição em Nova York, que, por mais de 30 anos, só elegeu candidatos do Partido Democrata; afinal, a cidade é composta por negros, judeus, latinos, imigrantes e homossexuais.
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Definição de Glória que mostra o real sentido da sofisticação humana: "Chique é andar na rua sem medo".
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PS - Cenário do tráfico de drogas, a Mangueira, no Rio, é uma das mais notáveis experiências mundiais para prevenção contra delinquência juvenil. Segredo: envolvimento comunitário e ofertas de programas de esporte e lazer, patrocinados, em parte, pela Xerox. Meninos e meninas aprendem a trabalhar para as escolas de samba, expostas ao poder sedutor da arte.
No ano passado, nenhum adolescente foi morto e ninguém foi preso por assassinato na Mangueira. Ótimo que olhemos Nova York, mas indispensável estudar a Mangueira. Pelo fértil conceito de Glória, Mangueira revela seu lado chique, ao apontar caminhos de civilidade; nenhum homem público deveria ir ao Rio sem conhecer a experiência.

Fax: (001-212) 873-1045

E-mail gdimen@aol.com

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