São Paulo, quarta-feira, 26 de fevereiro de 1997
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Brasileiro estréia 'One Flea Spare' em NY

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Ron Daniels, nascido Ronaldo Daniel, em Niterói, 54 anos atrás, e um fundador do teatro Oficina nos anos 60, fez ontem em Nova York a primeira apresentação da peça "One Flea Spare" -que a revista "Time", antes mesmo da estréia nova-iorquina, considerou um dos dez melhores textos recentes nos Estados Unidos.
A montagem estabelece Daniels como um dos diretores mais solicitados na ponte teatral Nova York-Londres, nos chamados teatros "subsidiados", considerados de maior qualidade.
"One Flea Spare", da norte-americana Naomi Wallace, é das poucas estréias programadas para 97 no Public Theater, o teatro dirigido por George C. Wolfe -diretor, entre outras, das duas partes de "Angels in America" e do musical "Bring in'da Noise".
Antes, no final do ano passado, Daniels dirigiu no também prestigioso Royal National Theatre, em Londres, a peça "Blinded by the Sun", de Stephen Poliakoff.
O diretor vinha de ser informado da premiação de "Blinded by the Sun" como peça do ano na Inglaterra, quando recebeu o jornal para uma entrevista, três semanas atrás, no Public.
'Muito aconteceu'
Daniels, passadas mais de três décadas desde que deixou o Brasil diante do golpe de 64, tem certa dificuldade para achar palavras em português, mas ainda arrasta os "erres" como todo carioca, ou, no caso, fluminense. "Muito aconteceu" desde que deixou o país, lembra ele, com esforço.
Arrola as peças que fez, quando dividia com Renato Borghi o posto de primeiro ator da companhia. Desde "A Vida Impressa em Dólar" até "Pequenos Burgueses", passando por "Todo Anjo É Terrível", por "José do Parto à Sepultura", esta dirigida por Augusto Boal, mas no Oficina. Foram pelo menos seis espetáculos, mas nem o diretor sabe ao certo.
Saiu do Brasil em janeiro de 64, em viagem pelo mar, levado ao porto de Santos por Borghi e pelo diretor José Celso. "Todos dizendo adeus, no cais", lembra. Partiu para um curso de três meses em Londres e, quando estava para voltar, os militares foram às ruas. Amigos do Brasil aconselharam-no a esperar. Jamais retornou, em definitivo. A última visita breve foi há 20 anos.
Fez uma curta carreira como ator na Inglaterra e, a partir de 68, quando chegou à Royal Shakespeare Company, pela qual atuou em duas peças em papéis menores, decidiu-se pela direção.
Começou nas companhias regionais inglesas, modestamente, mas logo foi aos Estados Unidos, dirigir no também afamado American Repertory Theatre. No final dos anos 70 estava de volta à RSC, convidado e de certa maneira "apadrinhado" por Trevor Nunn -mais conhecido no Brasil pela direção de musicais como "Les Misèrables" e "Cats".
Por mais de 15 anos, Daniels trabalhou como diretor artístico associado da Royal Shakespeare Co., chegando a dirigir The Other Place, o conhecido teatro "experimental" da companhia inglesa.
Montou mais de 30 peças na RSC, algumas de grande repercussão, como um "Hamlet" (dos quatro que já encenou) e um polêmico "Clockwork Orange".
No início da década de 90, com uma grande reviravolta na companhia, terminou desempregado. Voltou para o American Repertory Theatre, nos Estados Unidos, e passou a dirigir em toda parte: no Guthrie, no Yale Repertory, no Shakespeare Theatre, de Washington, todas companhias "subsidiadas" nos EUA; no National Theatre, em Londres, na própria RSC; em 95, chegou a Tóquio.
Dirige peças alucinadamente. Só no ano passado foram seis montagens diferentes, além de uma ópera de Mozart: "The Tempest" e "Antony and Cleopatra", de Shakespeare, e "Long Day's Journey into Night", de Eugene O'Neill, nos EUA; "Slaughter City", de Naomi Wallace, em duas produções diversas, com elencos diferentes, uma nos EUA, outra na Inglaterra; e a premiada "Blinded by the Sun", na Inglaterra.
"A serviço do poeta"
Daniels é respeitoso ao extremo com o texto. "Para que mexer? São grandes peças. Peças maravilhosas. Eu estou a serviço do poeta, acho realmente que o trabalho do diretor é dar vida à visão do poeta." Mas dá nuances à afirmação. Acredita que o teatro da América, do Mundo Novo, Brasil ou EUA, tem a obrigação de ver as peças em contexto contemporâneo.
"No que eu faço, ao mesmo tempo em que há um respeito ao texto, há uma interpretação completamente moderna." Uma das montagens que tornaram Daniels conhecido, neste sentido, foi um "Hamlet" traumatizado, de pijamas. "Na minha memória de brasileiro, eu me lembrava de um padrinho que passava o dia inteiro, em casa, de pijamas", ri o diretor. "Ficaram escandalizados!"
Trabalhar demais é resultado, em parte, de uma exigência financeira. Perguntado sobre onde mora, Daniels acabou por se revoltar com a remuneração que está recebendo para dirigir "One Flea Spare". "Fazer teatro aqui nos Estados Unidos não dá dinheiro. Em Londres também não dá dinheiro. A única maneira de ter dinheiro é fazendo teatro comercial. E eu não faço. Já fiz sucesso em teatro, mas não sucessos comerciais."
E conclui voltando ao Brasil, ao Oficina. "Eu trago comigo, profudamente, a experiência do teatro Oficina. Os meus anos do Oficina, realmente, me afetaram profundamente... A maneira que eu vejo o teatro, a sociedade, não me permite fazer um teatro comercial bobo. Eu estou pobre! Eu faço todos esses espetáculos e ganho... Sabe quanto eu estou ganhando para fazer um espetáculo aqui? US$ 4.000. Mal dá para viver. Graças a Deus também estou fazendo ópera."

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