São Paulo, quarta-feira, 26 de fevereiro de 1997
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Novo estilo de comédia usa retórica da publicidade

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não tive muita vontade de criticar "Pequeno Dicionário Amoroso", filme de Sandra Werneck em cartaz já há algumas semanas em São Paulo. É uma comédia simpática, que merece mesmo ser chamada de "o filme do verão", como dizem os seus cartazes de propaganda: algo divertido e descartável, sem outras pretensões além de ter sucesso de público.
Mas neste domingo assisti, no canal Multishow, a um capítulo da minissérie "Mangueira, um Amor à Primeira Vista", com Júlia Lemmertz e Alexandre Borges, e vi, agravados, os defeitos de "Pequeno Dicionário Amoroso".
Há um novo estilo de comédia na praça; ou melhor, uma nova fórmula, com seus cacoetes e maneirismos. Começou bem e vai piorando a olhos vistos.
A escala de qualidade começa em "Sábado", de Ugo Giorgetti -um dos melhores filmes brasileiros da nova safra-, passa pela ótima "Comédia da Vida Privada", na Rede Globo, cai bastante em "Pequeno Dicionário" e termina neste "Mangueira".
Era impressionante, em "Sábado", o realismo das falas, dos gestos, do vocabulário de cada ator. Tudo ficava engraçado de tão natural, de tão fotográfico, de tão bem observado, a ponto de não se perceber o exagero cômico dos traços; um pouco como as caricaturas de Paulo e Chico Caruso.
O prazer na imitação perfeita dos sotaques populares, dos clichês de classe média, das entonações "sinceras" de madames, faz também o forte de "Comédia da Vida Privada".
Pedro Cardoso, Tony Ramos, Giulia Gam, Marisa Orth -antes do massacre de "Sai de Baixo"- são prodígios de cinismo em cena; a tela da TV parece que vai explodir de tanta realidade.
"Pequeno Dicionário Amoroso" transformou isso em fórmula. "Mangueira" é a aplicação malfeita dessa fórmula. O filme de Sandra Werneck, para começar, é muito fraco de enredo.
Na "Comédia da Vida Privada", há reviravoltas, confusões, trocas malucas de casais. O tema da série -problemas de relacionamento amoroso banais e típicos de classe média- se enriquece na confusão dos personagens, na simetria das situações, na surpresa lógica do desfecho.
Nesse "filme do verão", tudo se resume ao essencial: os mesmos problemas banais do relacionamento amoroso. Primeiro, a timidez, depois a conquista, a paixão, o tédio, por fim a separação. Não há situações absurdas, quiproquós, flagrantes, extravagâncias de roteiro, como é o caso da "Comédia da Vida Privada".
A naturalidade dos atores persiste. Mas aí surge um problema. O realismo da atuação, a caricatura perfeita que havia em "Sábado" e na "Comédia da Vida Privada" estavam a serviço de um absurdo geral da situação em que os atores estavam envolvidos. Mas no "Pequeno Dicionário" esse realismo dos personagens se soma à banalidade do próprio enredo. Como evitar que o próprio filme não se torne banal?
É aí que intervém a fórmula, o maneirismo, o "estilo" a que me referi. O filme tem de manter uma distância frente à banalidade dos personagens e da história. O mecanismo que usa para isso são os verbetes, a forma de dicionário a que recorreu.
Como se sabe, a história de amor entre Daniel Dantas e Andréa Beltrão é pontuada por intervenções, por palavras que vão de A a Z e ocupam em silêncio a tela, antes de cada novo episódio. Não me lembro dos verbetes: Tédio, Traição, Telefone, ou Birra, Bode, Bobagem, ou Encontro, Esquisitice, Espasmo, tanto faz.
O efeito é mostrar a distância entre o filme, a diretora, o roteirista e aquilo que se passa na tela. Se tudo é banal, o verbete aparece como sinal irônico, atestando a inteligência do autor frente à pouca inteligência ou à inconsciência natural dos personagens. Pisca-se um olho para o público.
No fundo, é a retórica da publicidade moderna. O comercial de margarina mostra gente "normal", num dia-a-dia que quase nos esmaga de tão certinho que é. Mas daí vem o humor, a voz em off, rompendo o encanto da reprodução perfeita, como se dissesse: "Espere, isto é só um comercial de margarina". E, dizendo isso, readquire, pela confissão da farsa, credibilidade junto ao espectador.
Tudo é chique e verdadeiro nos anúncios de Galaxy ou qualquer outro cigarro de baixos teores. Modelos inteligentes, quase sempre no papel de "artistas plásticos", encaram com esportividade seus fracassos amorosos, suas briguinhas e os enjoamentos da parceira, em nome desse "algo em comum" que se expressa no piscar de olho, na cumplicidade irônica, nos amuos de verão , na raivinha que não desmente o triunfo que existirá em acender um cigarro esperto.
Um anúncio de Rider ou coisa parecida mostra o casal, num iate, em crise histérica. O desodorante After Sport apresenta os dois modelos brincando de jogar tênis sem raquete. Ou seja, sabemos que isso tudo é ficção, que a cena é implausível, mas quanto mais implausível for, mais real e mais plausível será nossa mensagem publicitária.
A ironia deixou de ser um fator de subversão, deixou de ser estímulo à desconfiança e à crítica; foi absorvida pela publicidade, transformou-se em afetação. É o efeito que Roland Barthes chamava de "vacina". "Sei que estou mentindo, mas..." Mas use After Sport. É a única coisa real nessa comédia, a única coisa ao seu alcance, queridinho.
E é como se o realismo de "Sábado" se tivesse tornado tão insuportável -justo um filme que desmonta a farsa da propaganda-, que fosse preciso adicionar a esse realismo uma dose de "inteligência" publicitária, de ironia. Um recurso comum em "Pequeno Dicionário" e "Mangueira" é fazer com que o ator apareça de frente para a câmera, numa confissão sincera, quebrando o desenvolvimento da história.
Outro recurso é o paralelismo: um ator diz uma coisa, a atriz diz a mesma coisa, sem que um saiba o que o outro estava dizendo. "Ah, eu queria que ele me ligasse agora", diz a mulher. "Ah, eu queria que ela me ligasse agora", diz o homem. Os dois pegam o telefone, o telefone está ocupado.
Fulano não sabe que beltrana estava ligando para ele, Beltrana não sabe que fulano estava fazendo o mesmo. Daí o telefone ocupado. Mas o espectador fica sabendo; sente-se espertinho sem maior esforço. Entendeu, apreciou a espertice do filme.
Não é surpresa, então, que todos esses personagens apareçam como espertos e bobos ao mesmo tempo. É a bobice e a esperteza de uma classe média emancipada de problemas econômicos, que trabalha pouco e daí tem tempo para essas coceirinhas conjugais.
Biólogos, arquitetos, decoradoras, antropólogas são a base social desse mundinho irônico de baixos teores com sutiã de lycra, de aeróbica com chopinho, de tesão com tédio, de traições com nhenhenhém, de liberô possessivo, de crises de verão.
Depois de separados, os dois bacaninhas de "Pequeno Dicionário Amoroso" confidenciam à câmera suas saudades dos bons tempos. Era gostoso, diz o carinha, ouvir o ronquinho da amada. Um pouco isso serve de advertência: vocês ainda terão saudades de Fernando Henrique. O filme do verão é o filme da era FHC.

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