São Paulo, quarta-feira, 26 de fevereiro de 1997
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A religião do presidente

ROBERTO ROMANO

Nosso presidente não é mais ateu. Seguindo um colega francês, ele frequenta a missa em troca do reino. Crônica antiga: já o Império Romano reconheceu o cristianismo, no Edito de Milão (século 4), como culto oficial.
Antes, Constantino teria visto nos céus um "labarum", estandarte unindo a coroa, a cruz e o monograma de Cristo. "Com este sinal, vencerás!". Grato, o governante entregou povos inteiros à igreja, sobretudo na Itália.
É verdade que Lorenzo Valla, no início da era moderna, provou que semelhante "doação" era falsa. Mas Valla ensinou Erasmo e Lutero. Este último dirigiu suas lições contra os que vendiam, como o monge Tetzel, a salvação em troca de moeda ("Sobald das Geld im Kasten Klingt/Die Seele aus dem Fegfeuer springt!": "Toda vez que a moedinha no cofre ressoar/A alma do purgatório vai pular!"). Isso custou à igreja metade de suas almas.
Hoje, publicitários e governo buscam tostões, aos milhares e milhares, para trazer o papa. E dizem, ao modo de Tetzel, ser preciso garantir o marketing. Um cristão temente a Deus se ruboriza com esses atos, que lembram o episódio de Jesus, com chicote na mão, expulsando mercadores do sagrado.
Vale a pena fascinar massas enormes, perdendo força ética? Os diplomatas da Cúria respondem que sim. Até o século 20, o papado, com essas trocas, garantiu para si um pedaço da soberania temporal, já que a do espírito, ele a imagina como puro monopólio vaticano. O "lábaro que ostentas, estrelado", do Hino Nacional Brasileiro, é uma cruz de Constantino que se projeta no Cruzeiro do Sul. O domínio da igreja some da terra, mas se enquista no céu.
FHC é crente. Deve conhecer os ensinos católicos. Referindo-se aos cidadãos, diz a igreja: "Seja individualmente, seja em grupos, evitem atribuir demasiado poder à autoridade pública e não exijam dela inoportunamente privilégios e proveitos exagerados, de tal modo que diminuam a responsabilidade das pessoas, das famílias e dos grupos sociais". ("Gaudium et Spes").
O Congresso Nacional, com a reeleição, retira toda a responsabilidade dos grupos e do próprio Legislativo. O Executivo aumenta o fosso entre mortais e deuses do Planalto.
FHC tenta o absolutismo. Ele se encontra, nisto, com outro rei intelectual, Jaime 1º, cujo salmo preferido dizia: "Eu declarei: vós sois deuses". Jaime apagou outras partes do mesmo salmo, sobre os poderosos: "Contudo morrereis como um qualquer, caireis como qualquer dos príncipes".
Donos do mundo brincaram de ser deuses, esqueceram morte e queda. A igreja nunca aceitou o absolutismo. A idéia que sustenta, como diz Max Weber -FHC o conhece melhor do que o catecismo e a Bíblia-, afirma que "Deus deve ser mais obedecido do que os homens". Comenta Weber: este é "o limite mais antigo e, até a época da grande revolução social puritana e dos 'direitos humanos', a mais sólida barreira para todo poder político".
FHC busca no Vaticano a legitimação, da "qual dificilmente podem prescindir o soberano césaro-papista, o soberano pessoalmente carismático (por exemplo, o plebiscitário) e todas as camadas sociais cuja situação privilegiada depende da 'legitimidade' do domínio".
Qual o fim da colusão entre líder civil e hierocratas? Trata-se, afirma Weber, de "um procedimento incomparável para domesticar os dominados, como o político radical italiano mais inimigo da igreja, que não pode resistir à educação conventual para as mulheres como um procedimento domesticador" ("Economia e Sociedade").
No controle das massas, poder secular e religioso se refletem. O primeiro coage os inimigos da igreja, enquanto ela legitima o governo: "O que marca a burocracia é um profundo desprezo por toda religiosidade irracional, unido à idéia de que é possível utilizá-la enquanto meio de domesticação".
A burocracia alemã queria banir do Exército as superstições, "nas quais ninguém acreditava". Desistiu, pois as doutrinas religiosas eram "o melhor alimento para os recrutas", candidatos certos ao ofício de bucha de canhão. "A burocracia vê-se obrigada, apesar de seu desprezo interior de toda religiosidade assumida seriamente, a respeitar a religião, no interesse da domesticação das massas" (ainda "Economia e Sociedade").
FHC foi ao Vaticano, ajoelhou-se, fez o sinal da cruz. Ouviu do papa que a reforma agrária deve ser feita "nos limites da lei". O pontífice virá ao Brasil ajudar o poder civil, enredado na camisa de sete varas da citada reforma.
É sintomático o artigo do ministro desse setor, na Folha, "Vamos atender o apelo do papa" (23/2). Enquanto isso, o secretário da Justiça de São Paulo, cristão de verdade, viu-se acusado de ser o responsável pelas escaramuças entre UDR e MST. O problema, segundo o cristianíssimo presidente, seria dos "governos estaduais", sem rigor na "aplicação da lei", conforme ensina o papa...
E os "piedosos" atentados verbais -por enquanto- contra o Judiciário, personificado no STF? E os destemperos do porta-voz real da Presidência, sr. Motta, com insultos a juízes? E as frases do governante contra os seus críticos? A tese egocrática do presidente é despótica e sediciosa: são brasileiros e fiéis apenas os que repetem, sem desvios, as promessas do governo. Os outros "não pensam no Brasil".
Isto é o "labarum" do líder faccioso. Na ditadura militar, o mote era "Ame-o ou deixe-o". Mesmo certo sociólogo foi processado, recebendo justiça da magistratura, hoje invectivada por ele e pelos áulicos.
No Estado Democrático, segundo a igreja (mesmo a de João Paulo 2º), se exige de todos que "reconheçam as opiniões legítimas, mas discordantes entre si, sobre a organização da realidade temporal" ("Gaudium et Spes"). "Vários são os homens que integram a comunidade política e podem legitimamente seguir opiniões diversas."
Isto não é imperial. Apenas democrático. É pouco para o presidente, neófito em vida cristã, na violenta Constantinopla em que se transformou Brasília. Que o lábaro de FHC não retire direitos das minorias religiosas e políticas. É o mínimo que se pode esperar, após a recente visita ao Vaticano, transformada em triste espetáculo teológico-político.

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