São Paulo, segunda-feira, 3 de março de 1997
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14º DP

JOSIAS DE SOUZA

São Paulo - Fixado na parede, o cartaz rosna para as pessoas na fila: "Minha educação depende da sua". Atrás do balcão, uma mocinha, de cenho crispado. Mais ao fundo, uma senhora, que acorre nos instantes pânicos.
Estamos em uma sala, nos fundos do número 372 da rua Deputado Lacerda Franco. Aqui funciona o 14º Distrito de Polícia de São Paulo.
O rabo da fila estende-se à lateral do terreno. A distância até o balcão, curta à primeira impressão, transforma-se em uma saga. Exíguos 18 passos são vencidos em duas arrastadas horas, 21 aborrecidos minutos e 15 infindáveis segundos.
Tempo bastante para arquivar na mente o retrato de um Estado em decomposição. A falência salta de cada detalhe. Três, quatro passos e temos, à direita, uma pia. A torneira escorre à farta. Inútil tentar estancá-la. Está enguiçada -talvez há dias, quem sabe semanas.
Mais alguns passos e chega-se à porta. Ao fundo, um barulho familiar. Sim, sim. É mesmo a voz do velho carimbo, ora comprimido contra a almofada de tinta, ora socado contra a folha de papel.
Há sobre as mesas duas velhas Remington, uma modelo 100 e outra tipo 150. As máquinas de escrever como que denunciam o anacronismo do local, ainda não visitado pelos efeitos revolucionários da computação.
Mas o que fazemos nós, habitantes do andar de cima, numa delegacia imunda? Decidimos, eu e minha doce Liliane, adotar uma criança. E eis que o Estado nos pediu uma bateria de documentos, entre os quais o famigerado atestado de bons antecedentes. Preenchidos os formulários, batidos os carimbos, a mocinha me estende um protocolo. Voz seca, avisa: "Volte em 45 dias."
Assim, na manhã da última quarta-feira, o 14º DP transformou uma reputação de 35 anos em mera interrogação. O Estado precisa de seis semanas e três dias para informar se sou, de fato, um sujeito honesto. Nem parece que nossas ruas estão repletas de crianças abandonadas.

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