São Paulo, segunda-feira, 3 de março de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Jabor pergunta

CRISTOVAM BUARQUE

A esquerda brasileira tem se concentrado na crítica ao neoliberalismo, em vez de analisar os seus próprios equívocos e formular claramente seus objetivos. Por isso, um recente artigo de Arnaldo Jabor (Folha, 18/2) merece uma leitura atenta.
Jabor pergunta por que ocorre uma brecha entre os objetivos da esquerda e os meios que ela propõe para realizá-los. O problema está em que, no final do século 20, a esquerda continua com os mesmos objetivos de meados do século 19. Não percebeu ainda que a igualdade plena do século 19 é impossível com as técnicas do século 20.
Os países socialistas resolveram o problema sacrificando a liberdade: o Estado escolhia quem consumia. Se queremos manter o sonho da liberdade ao lado da igualdade, vamos ter que redescobrir a ética e a definição de uma igualdade essencial, diferente da igualdade do consumo supérfluo.
Jabor indaga por que o PT sabota os atuais governadores petistas. No meu caso, tenho tido apoio do PT. Os conflitos são com os sindicatos dos servidores. Durante a ditadura, os sindicatos foram os principais instrumentos da luta pelos direitos dos trabalhadores, na defesa da educação e da saúde públicas. Mas, em um país com apartação, ao defenderem interesses de suas corporações, os sindicatos às vezes tornam-se antipopulares e conservadores.
Em Brasília, um sindicato de servidores está pedindo o "impeachment" do governador porque determinei um teto para os salários. O sindicato é obrigado a defender os salários integrais e não o Programa Bolsa-Escola, que está colocando 40 mil crianças na escola a um custo equivalente à perda que tiveram os 1.000 servidores na parte de seus salários acima de R$ 6.000, o teto atual.
O desafio da esquerda é definir uma pauta para todo o povo e construir uma ponte entre os sindicatos e as massas excluídas; e seduzir os eleitores para uma proposta abrangente, falando à maioria silenciosa de toda a população e não apenas às minorias barulhentas dos grupos corporativos.
Jabor pergunta se o PT foi prejudicado pelo ideologismo de intelectuais pequeno-burgueses. Mais grave, o problema não é que eles ficaram pequeno-burgueses, é que ficaram pequenos. Sobretudo os da direita. Com a apartação, os intelectuais ficaram com medo do povo e, com a universidade, ficaram presos aos doutorados.
O PT está sendo prejudicado pela falta de reflexão para entender a realidade e de criatividade para formular um futuro diferente do previsto no começo do século 20. O partido foi prejudicado também por sua base quase totalmente sindical, em um país com apartação, onde sindicatos representam apenas parte do povo. E pela inflação, que aprisionou o PT em táticas para recuperação das perdas salariais do trabalhador, em vez de estratégias para a construção de uma utopia para todos.
O articulista e cineasta quer saber se a esquerda tem compromisso com a democracia. Tem. Mas nossa democracia parece uma ditadura da elite. A ditadura acabou porque ficou desnecessária: tudo o que exigia uma ditadura -concentrar renda, impedir debate, fazer reformas- é feito na democracia hoje.
E como lutar contra um liberalismo selvagem sem achar que ele é um complô? O caminho é formular a alternativa de globalização sem exclusão. Em Davos, os ricos do mundo já levantaram dúvidas sobre o liberalismo e a forma da globalização. O Brasil tem tudo para começar aqui a proposta de um novo modelo, que seja global e ético, sem exclusão.
Jabor questiona como fazer um programa sem a idéia de revolução. O problema não é abandonar a idéia de revolução, mas rever seus objetivos e definição. No lugar de uma revolução social, uma revolução nas prioridades: como termos toda criança na escola e a melhor escola primária de todo o mundo.
Outra dúvida: seria possível melhorar a vida do povo sem fortalecer a economia? Não há como. Mas a economia não melhora necessariamente a vida do povo; e pode piorá-la. A pergunta é como fortalecer uma economia que melhore a vida do povo: subordinando a economia a valores éticos, impedindo a economia burra e perversa que piora a vida do povo.
Jabor pergunta ainda como diminuir o déficit sem reforma fiscal. Não há como. Mas não há como justificar apenas as reformas administrativas que sacrificam o servidor. A esquerda precisa sair de sua tática anti-reformista, na defesa dos direitos já adquiridos, e apresentar as nossas reformas, de novos direitos para todo o povo.
E como governar com a folha estourada? A idéia de gastar muito com folha de pagamento é uma concepção da direita keynesiana, onde o Estado existe para criar demanda, para os servidores comprarem produtos do capitalismo.
A concepção da esquerda deve ser um Estado a serviço do povo. A esquerda tem defendido gastos elevados com pessoal porque está prisioneira das corporações de servidores. Mas é preciso subverter conceitos: salário de médico, de professor, se bem utilizado, é investimento e não custo.
Jabor quer saber como acelerar a reforma agrária no atual sistema de leis. É quase impossível. A pergunta deve ser como ajustar o sistema legal às necessidades éticas da reforma agrária. A democracia brasileira conseguiu fazer as leis serem respeitadas. Agora precisamos fazê-las respeitáveis. Para libertar os escravos, tivemos de mudar a lei.
E como fazer uma política industrial para nos defender do imperialismo global? Defendendo com vigor os objetivos sociais que queremos, sem deixar que a política industrial, ou a falta dela, seja contra eles.
E como seria -indaga Jabor-, concretamente, uma política de inclusão social? Três exemplos concretos: espalhar a bolsa-escola em todo o Brasil, distribuir terras e implantar as "agroindústrias familiares", fazer todo banco ser também um "banco do trabalhador", para o pequeno e autônomo empreender. São idéias concretas em execução no Distrito Federal, visando construir uma globalização sem exclusão, uma modernidade ética.
Jabor pergunta, finalmente: "Que fazer?". Fazer perguntas já é um bom começo.

Texto Anterior: Para lavar o tapete
Próximo Texto: Orçamento da saúde: o vôo cego
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.