São Paulo, segunda-feira, 3 de março de 1997
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Orçamento da saúde: o vôo cego

VICENTE AMATO NETO; JACYR PASTERNAK

Como estabelecer prioridades na área da saúde quando a variável, às vezes, é vida ou morte?
VICENTE AMATO NETO
e JACYR PASTERNAK
Em todas as atividades humanas trabalha-se num sistema denominado orçamento. Sabe-se, com maior ou menor exatidão, de quanto se dispõe para fazer o que é necessário. Quase nunca é possível executar o desejado, já que a quantidade de recursos limita a ação. Aí, então, são escolhidas prioridades, e, tradicionalmente, deixa-se alguma coisa para, se viável, iniciar algum programa novo, desde que o atendimento programado deixe de fato a sobra.
No caso da saúde, a coisa é muito complicada, principalmente em virtude de alguns fatores que não funcionam bem em nenhum modelo econométrico. A seguir, estão algumas ilustrações, a propósito.
1) Quem ordena a despesa não é quem paga a conta. Em qualquer dispositivo, liberal ou socializado, o médico que gera os dispêndios em exames laboratoriais, métodos de imagem e outras providências não se preocupa com os gastos, que não serão seus.
2) Em ações socializadas, o doente também não precisa preocupar-se com a conta, pois um sistema coletivo a cobre. Claro que, quando é global, todo mundo, inclusive ele, paga por tudo, mas a sua porção não é evidente, estando no bolo geral.
Como dizia Gary Hardin, no seu famoso livro "The Tragedy of the Commons", quando os bens são grupais, mas os lucros, individualizados, faz sentido aos indivíduos tirar o que puderem do coletivo, ainda que assim, a prazo médio ou até curto, destruam a fonte de renda.
3) Como estabelecer prioridades quando a variável, às vezes, é vida ou morte? Como dizer que tal remédio é caro demais quando ele é a única opção possível? Como pesar quem deve e quem não deve receber apoio governamental? E os que nada têm, como ficam?
4) Como justificar para a comunidade que sacanagens individuais, no contexto dos que bebem e fumam, por exemplo, gerem contas para o governo? Isso é justo? Afinal, ninguém pediu a opinião do contribuinte quando agiu de maneira inadequada do ponto de vista da sua saúde. Por que cargas-d'água todos nós somos responsáveis pelo tratamento médico desses cidadãos?
Vamos deixar um ponto meridianamente claro: não temos respostas para todas estas dúvidas. Cremos que deve haver solidariedade entre os seres humanos e, sim, que precisamos pagar grande parte da conta da saúde, rateando entre os que têm alguma coisa para que todos, incluindo os que nada possuem, recebam apoio.
Mas como limitar as despesas e fazer isso com justiça julgamos muito complexo. Temos certeza, no entanto, de que há consenso no sentido de não desviar recursos da saúde para ambulâncias, prefeituras que fazem fontes luminosas e despachantes ou fraudantes, para início de conversa.

Vicente Amato Neto, 67, infectologista, é professor titular do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).

Jacyr Pasternak, 53, infectologista, é médico-assistente da Divisão de Clínica e Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas da USP.

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