São Paulo, terça-feira, 4 de março de 1997
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Modernos reescrevem vida do Messias

JOSÉ GERALDO COUTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Frei Betto não é o primeiro e certamente não será o último a reescrever a história do filho de Deus.
Como Jesus não deixou nada escrito, e como os Evangelhos aceitos pela igreja (Mateus, Marcos, Lucas e João) são suficientemente elípticos para dar margem a todo tipo de especulação, cada um preenche como quer as lacunas deixadas pelas Escrituras.
Diferentemente dos primeiros Evangelhos apócrifos, as obras modernas da literatura e do cinema que recontam a história de Cristo não têm a pretensão da veracidade.
Sua intenção, no mais das vezes, é a de problematizar a figura de Cristo, desdobrando suas possibilidades dramáticas, filosóficas ou religiosas.
Em seu romance "A Última Tentação de Cristo" (1949), que Martin Scorsese filmaria em 1988, o grego Nikos Kazantzakis concebeu um Cristo humano, demasiado humano, que no último momento, na cruz, era assediado pela tentação de ter uma vida normal, com mulher, filhos e roupa lavada.
O filme de Scorsese, como se sabe, causou barulho pelo mundo afora e quase foi banido dos cinemas de São Paulo pelo então prefeito Jânio Quadros.
Um Cristo de carne e osso, mas bem menos atormentado, aparecia também em "A Via Láctea" (1969), de Luís Buñuel. Contava piadas à mesa, se enganava de caminho num bosque e até ameaçava fazer a barba.
Outra releitura das Escrituras que deu o que falar foi "Je Vous Salue Marie" (1985), em que Jean Luc Godard colocava em cena uma Virgem Maria frentista de posto de gasolina, jogadora de basquete e namorada de um taxista.
Por fim, se deixarmos de lado o irresistível besteirol de "A Vida de Brian" e as versões pop-bobocas "Jesus Cristo Superstar" e "Godspell", chegamos ao "Evangelho" de Saramago, que lhe valeu o ódio sistemático dos carolas de seu país e de alguns outros.
O que se conta ali? Nada que contrarie factualmente as versões autorizadas. Só que o autor português recheia o mito com a consistência da vida real e vai buscar no humano a marca do sagrado.
Não deixa de ser irônico que as ortodoxias católica e protestante acusem de blasfemos os artistas de nossa época mais empenhados em transcender o farisaísmo reinante.
Ou alguém ainda acha que Cecil B. De Mille está mais perto de Deus que Saramago, Buñuel ou Godard?

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