São Paulo, terça-feira, 11 de março de 1997
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"Neo Ali-Babás" tiram leite de vaca morta

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O escândalo dos precatórios é uma aula de Brasil moderno. Estamos evoluindo em matéria de corrupção. Enquanto a "corrupa" do PC-Collor-Anões era "rural", cordial, clientelista, esta é urbana, tecnológica, complexa como a clonagem de ovelhas.
Descobrimos que o Estado (Estados) é o pai dos empresários mesmo quando está falido. Falência também dá lucro, aprendemos. A linha genética dessa clonagem é assim: os alquimistas financeiros chegam aos Estados falidos e propõem transformar "nada" em milhões de dólares, merda em ouro. E conseguem.
Essa CPI dos precatórios nos revela como se tira leite de vaca morta. Nos precatórios não há o momento da "bruta flor do assalto", como houve até no caso do grande PC, nosso mestre eterno. Há mãos pequenas, unhas polidas, um raro prazer...
Há nesse crime uma reengenharia do roubo. Uma terceirização da esperteza em cadeia. Ninguém é culpado sozinho, não há o "torpe indivíduo" sobre o qual pesam a pecha e a vergonha. Aqui a culpa dilui-se numa linha de interfaces conectadas.
Nesse crime não há réus, todos são cúmplices. Não há Ali-Babá; só os 40 ladrões. É nossa versão das pirâmides da Albânia.
A culpa de tudo é o fim da inflação, que atiçou a criatividade dos seus parasitas que, sem "over", sem "float", sem "bicicletas cambiais", tiveram que virar "picaretas virtuais".
No mundo dos precatórios, todos são "laranjas". Essa é sua modernidade: um absolve o outro. Claro que terão de arranjar um bode expiatório. Quem será? O pobre zarolho Wagner Batista Ramos? É possível. É o mais feio, o classe média, com um só rim. Os "precatórios" lembram os assassinatos rituais astecas, em que todos dão uma facada na vítima e ninguém matou.
Os "precatórios" nos ensinam que a culpa da merda brasileira se dilui horizontalmente no anonimato dos segundos escalões. É um roubo democrático, quase uma distribuição de renda. É um roubo antimessiânico, não inclui a figura do Pai-presidente, é um roubo entre irmãos. Vai da burguesia dirigente do Nordeste e Sul, passa por técnicos de classe média e chega a proletários-laranjas trêmulos na CPI, diante de senadores eufóricos de inesperada honradez.
Os "precatórios" formam uma gangue transideológica, nem de direita nem de esquerda, com todos os matizes políticos, desde o corretor "yuppie" sem partido até o último brilho do populismo janguista nos olhos verdes do Dudu Beleza, neto de Arrais. Os "precatórios" são o arco da nossa sociedade.
Bilhões e milhões
No exterior, a corrupção é o troco, a comissão que sobra. Aqui, é o principal. Alemão e japonês não roubam bilhões de dólares. Isso é uma "coisa nossa" como o samba e outras bossas.
Um dia desses, um dos corruptos aconselhou o outro, mais jovem e imprudente: "Sossega leão, você fala em 'bilhões' como se estivesse falando apenas de 'milhões!'"
Com os "precatórios", vemos que somos pré-capitalistas. Ninguém rouba para investir, como os americanos. Ninguém investe o butim em atividades produtivas. Rouba-se para guardar, à portuguesa.
Não há ética protestante, nem a tradição calvinista nos roubos brasileiros. Os "precatórios" têm uma nova "moralidade", uma moderna "razão cínica". Há algo de "revolucionário" em suas caras-de-pau, em seus brancos colarinhos impecáveis, há uma frieza de homens superiores diante da culpa. Não há vergonha; só orgulho de eficiência.
Roubei? Que importa? Importa que sou um gênio administrativo! Perto deles, nossos clamores moralistas ficam antigos. Ninguém esconde a cabeça em fraldas de camisa, como os ladrões de galinha. Os "precatórios" posam para fotos coloridas, sorrindo com uma luz de orgulho. Dizem os outros, com inveja: "Fulano é 'espada'! Sicrano é craque!".
Papel da Justiça
Nossos "Ali-babás" confiam na Justiça. Sua coragem é igual à paralisia do Judiciário. Este é o papel da Justiça: garantir que os "precatórios" jamais irão em cana. Eles são especialistas no labirinto financeiro que é protegido pelo labirinto das leis. A roubalheira moderna tem a complexidade da nova genética. Só experts entram. Os escândalos pós-modernos só servem para extasiar a nós, os leigos.
Os "picaretórios" são artistas modernos. Fazem roubos "abertos", como "instalações". Em suas obras não há princípio, nem meio e, certamente, não haverá fim. Nesse escândalo, o fim está no início.
Quando o primeiro corretor pensou no plano, já estava prevista a recompra dos títulos pelos fundos de pensão das estatais. Não há "micos". São cobras mordendo o rabo. Nossos precatórios são filósofos relativistas e pragmáticos. São prenúncios do século 21.
Os "picaretórios" provocam CPIs, que nos ilustram sobre a vida política e são também úteis para lavar fichas e folhas corridas. Como os sabões em pó, as CPIs lavam mais branco. Reciclam políticos. Uns se limpam nos outros e assim podem almejar cargos futuros.
Kit-luxo
Para nossos precatórios, ser feliz é ostentar. Não lhes interessa a contemplação elegante da beleza da vida, nem a serenidade aristocrática. Sua felicidade está mais para a imitação carnavalesca de Luís 14.
Os "precatórios" amam os kits típicos dos novos-ricos. Kit 1: mansão, lancha e jatinho. Kit 2: amante, vinhos, haras. Kit 3: pólo, ilhas e gargalhadas em Paris. Kit 4: arte, respeitabilidade, poder político e, um dia, medalhão, mausoléu com anjo chorando e nome de rua. Nossos neo-ricos são também polivalentes. Pilotam "learjets", cuidam dos colarinhos ingleses, gravatas Kenzo, fazem churrascos, comem sushis, comem todo mundo, loteiam praias, industrializam sêmen de boi.
Como conseguem tempo para tantas coisas? Onde tramam os golpes? Nos motéis com as louras do "tchan"? Nos galopes de pólo do Helvétia? Ou desarrolhando as garrafas de Petrus? Suas vidas são um "triatlon chic" e nos dão vontade de apurar mais sobre eles, não para descobrir responsabilidade, mas para conhecer suas vidas.
Como serão suas noites, suas amantes. Devem ser puros-sangues, belas como os cavalos de seus haras. Há um forte halo sexual nesses heróis cínicos. Exalam um clima de luxo fabuloso. Nossos corruptos nos matam de inveja.

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