São Paulo, quinta-feira, 13 de março de 1997
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Uma história com bonés

MOACYR SCLIAR

Os dois eram jovens. Os dois trabalhavam. Os dois tinham sonhos e projetos. Os dois usavam boné.
Os dois foram assaltados. Os dois foram intimados a entregar os seus bonés. Os dois se recusaram a entregar os bonés.
Os dois foram assassinados. Os dois foram fuzilados sem piedade. Em ambos os casos, os assassinos não usavam bonés. E acharam que a falta de boné justifica qualquer crime.
Os dois viraram notícia de jornal. Os dois transformaram-se em símbolo da violência urbana. Uma violência em que a morte pode ser provocada por um boné.
Os dois foram sepultados. Os dois subiram ao céu. Na entrada do céu, os dois foram recebidos por São Pedro.
Os dois contaram suas histórias. E até São Pedro, o porteiro do céu, ficou impressionado. E contou a Deus, aos anjos e a todas as criaturas celestiais que num país da Terra chamado Brasil havia quem matasse por bonés.
Os dois foram admitidos ao céu. Os dois tornaram-se anjos. E ganharam, naturalmente, um lugar de honra: junto ao Deus Todo-Poderoso. Um lugar protegido contra bandidos que matam por bonés.
Deus achou que eles mereciam alguma coisa que os destacasse entre outras almas. Que pedissem o que desejavam: vestes muito alvas? Auras? Asas de anjo?
Os dois se olharam. E os dois, ao mesmo tempo, pediram o que mais queriam.
Os seus bonés.
Hoje, no céu, há dois anjos diferentes. Dois anjos que não usam asas, nem harpas. São os anjos de boné. O maior desejo deles, o desejo que os faz rezar todos os dias, é muito simples.
Eles não querem que subam aos céus outros anjos de boné.

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