São Paulo, quinta-feira, 13 de março de 1997
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Povo contra imprensa

OTAVIO FRIAS FILHO

A vida de um paladino da imprensa que vai até o fim na defesa de seus ideais daria um filme talvez irrelevante e unidimensional. O interessante em "O Povo Contra Larry Flynt", de Milos Forman, é que o protagonista que bate às portas da Justiça americana em nome da liberdade de expressão é um crápula a caminho de ficar louco.
O filme mostra como Larry Flynt, dono de um cabaré-prostíbulo, tornou-se em poucos anos o bem-sucedido editor de uma revista de nudismo genital e humor escatológico, a "Hustler" (algo como "Bisca"). Como "Playboy" nos 50 e "Penthouse" nos 70, essa revista incorporou mais uma parcela oculta do sexo à cultura industrial.
A violência das reações contra uma revista tão abertamente escandalosa converte o escroque numa espécie de anti-herói, depois que um advogado passa a defendê-lo com base na Primeira Emenda da Constituição, a que proíbe restrições à liberdade de expressão, e que o próprio Flynt sofre um atentado que o deixou paraplégico.
Flynt nunca adere ao figurino de mártir das idéias, ele parece incapaz disso por temperamento, e oscila entre o cafetão oportunista e o provocador afetado pela demência. Seu único traço de constância é a ligação amorosa, flor em meio ao pântano pornográfico, entre ele e Althea (Courtney Love), que absolve a ambos.
É justamente essa condição de titular objetivo, não subjetivo, de um direito do qual ele abusa ou que ele enxovalha, conforme o ponto de vista, o que dá espessura ao personagem e vitalidade ao filme, permitindo a Milos Forman investigar os paradoxos da liberdade de expressão por meio do estudo de um caso-limite.
Essa liberdade visa a assegurar um bem público, a livre circulação dos produtos da mente, dada a convicção de que um tal clima propicia o esclarecimento geral, a correção de erros, a revisão de preconceitos e o controle público sobre as autoridades. Só secundariamente a liberdade de expressão é direito de quem a utiliza.
As implicações são paradoxais, a começar do fato de que a liberdade de expressão não só abriga a divulgação de mensagens que a contrariem: essa divulgação é a prova de que ela está em vigor. Sua matéria é fluida, imagens e palavras que não podem ser medidas como os bens, em direito civil, nem definidas como os crimes.
Daí a dificuldade em fixar limites, sobretudo porque o conflito de liberdades é quase sempre com outra garantia que se presta mal a ser delimitada e pior a ser medida: o direito à intimidade e à imagem pessoal. Conhecendo de perto a tirania política e religiosa, os autores da Constituição americana preferiram proibir qualquer restrição.
Cada um responde na forma da lei pelos abusos que cometer, a fórmula consagrada. Agora que estamos discutindo uma nova legislação de imprensa, seria bom que nossos legisladores, sem pedir que emulem seus colegas do Iluminismo, ao menos vejam o filme de Forman, caso extremo que lança luz também extrema sobre o assunto.

"O Povo Contra Larry Flynt", EUA, 1996, direção de Milos Forman, com Woody Harrelson e Courtney Love.

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