São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 1997
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Sergei Rachmaninoff recria Edgar Allan Poe na cantata "The Bells"

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Era o poeta Paul Valéry quem costumava dizer que uma obra de arte dura o tempo em que continuar ressurgindo de forma inteiramente diversa da que o autor pensou. Montagens feministas de "Esperando Godot" ou releituras "antipatriarcais" de Shakespeare são alguns exemplos nefastos dessa regra da sobrevivência poética.
Já as reinvenções de Edgar Allan Poe, desde Baudelaire e Mallarmé até Jacques Lacan e Jorge Luis Borges, só fizeram crescer, em todos os sentidos, sua obra.
Baseada na tradução russa de um dos poemas mais vulneráveis (para ser delicado) de Poe, a cantata, composta em 1913, faz dele uma outra coisa, muito distante dos ritmos condensados e onomatopéias ("Of the bells, bells, bells, bells,/ Bells, bells, bells...") que tanto irritavam Emerson e deliciaram os semiólogos, cem anos depois.
Os sinos de Rachmaninoff soam tão "russos" quanto o resto de sua música. Mas a palavra vai entre aspas, porque esta não é uma Rússia qualquer: é outra invenção de Rachmaninoff, um país que não existe, uma combinação de nostalgia e lembrança, com algum outro elemento indefinível e que é o que chamamos "Rachmaninoff". Anos de preconceito (contra sua popularidade) e de rigorosa militância vanguardista afastaram o compositor dos ouvintes mais sérios. Mas agora que a Guerra Fria acabou, vê-se que Rachmaninoff sobreviveu a tudo e permanece mais atual do que boa parte dos compositores modernos. É um mestre à antiga, indiferente à suposta evolução da música, só preocupado com seu próprio gênio. Não há melhor mostra de sua invenção, pessoalíssima, do que "The Bells", ou, ainda mais eletrizante, a quase-sinfonia de 1940, sua última obra e virtual resumo, "Danças Sinfônicas". Só a "Valsa" do segundo movimento já seria o bastante para definir a presença de Rachmaninoff entre os maiores sinfonistas da nossa era, rivalizando com Ravel e Richard Strauss como poeta das formas perdidas.
Este novo CD da Melodiya, com a cantata e as "Danças", é uma remasterização -tecnicamente impressionante- de uma gravação antológica, de 1963, com a Orquestra Filarmônica de Moscou, regida por Kiril Kondrashin. Não sei o que mais se poderia pedir de uma interpretação: vitalidade, delicadeza, senso de direção, controle de cores e pulso, virtuosismo -tudo, enfim, é admirável.
Tanto os solistas como a orquestra ainda fazem soar nas entrelinhas aquele segredo que é um patrimônio da humanidade, mas que só eles conhecem e que a gente finge que entende quando fala da "alma russa". Historicamente "irrelevante", sem consequências fora de si mesma, a música de Rachmaninoff é uma ave rara no céu da modernidade, voando para longe com o rosto voltado para trás. Ela vai de encontro a uma posteridade toda sua, que compartilha por algum tempo conosco, enquanto ainda não ficamos para trás.

Disco: Rachmaninoff - Symphonic Dances/The Bells
Com: Orquestra Filarmônica de Moscou
Regente: Kiril Kondrashin
Lançamento: Melodiya/BMG
Quanto: R$ 20, em média

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