São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
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O Carnaval da abertura

MIGUEL JORGE

Embora a utopia seja até aceitável em debates econômicos, enquanto estímulo à busca de soluções para os impasses, o mais importante na atual discussão sobre abertura comercial não é exatamente a abertura em si mesma, mas quais os caminhos para atingir o objetivo.
Fazer as coisas acontecerem antes de competir, como disse Joãosinho Trinta, que levou a Viradouro à vitória com o enredo sobre o fim do mundo, ou abrir totalmente o mercado?
Se não for "fazer acontecer" para, depois, competir, ou se qualquer país negociar por medo seu regime automotivo, ou acovardar-se em relação a seus interesses nacionais, voltará para trás, em nome da ordem unida da globalização.
Já é hora de tirar a fantasia, de tomar o lugar ocupado pelos foliões, de tirar os punhos de renda e de valorizar a inteligência e a coragem, repelindo a utopia da competição sem regras, o maior obstáculo à cooperação integrada entre as nações.
Os esforços de crescimento dos países de Primeiro Mundo, como EUA, Canadá, Japão etc., e das nações em desenvolvimento impõem a concentração de recursos -investimentos, tecnologias, competitividade etc.- em setores estratégicos de maior interesse coletivo.
Centrados nas indústrias automotiva, eletroeletrônica, das telecomunicações e outros, esses esforços repudiam chavões demagógicos do tipo "o carro nacional só será competitivo com a concorrência estrangeira".
Os EUA e boa parte da União Européia subsidiam fortemente seus mercados agrícolas, apesar de a Rodada Uruguai, encerrada em 1994, prever a abertura nessa área, o que nunca ocorreu.
Do mesmo modo, nas recentes negociações do futuro Acordo Global das Telecomunicações, na Organização Mundial do Comércio (OMC), México e Canadá foram contra a abertura total de seus mercados de telefonia a estrangeiros.
O Canadá recusa-se a conceder mais que 46,7% da telefonia convencional a investidores estrangeiros; o México permite apenas 40%, numa abertura programada a escalonada, ao contrário do que acontece no Brasil.
Por acaso isso negaria o princípio da livre concorrência, por exemplo, como apregoam os que defendem mudanças no regime automotivo brasileiro? Ou Canadá e México, com isso, querem ficar fora do processo de globalização?
Aliás, foi o que, implicitamente, afirmou o presidente Fernando Henrique Cardoso em sua recente viagem à Itália, quando -num chamado da sociedade brasileira à inteligência- voltou a criticar a "precipitação" na abertura da economia.
O presidente culpou o abrupto corte do subsídio ao carvão de Santa Catarina, em 1991, pelo colapso da produção carbonífera na região e reafirmou: "O Brasil quer se abrir, mas com reciprocidade".
Claro: o equilíbrio, no capitalismo e na globalização, só ocorrerá com a livre concorrência, sem prejuízo das carências mais justas dos trabalhadores (basicamente, emprego, educação e saúde). Se isso vale para economias desenvolvidas, hoje com o drama do desemprego, que se dirá para economias como a brasileira, na qual "as coisas ainda não estão acontecendo", como diria Joãosinho Trinta.
Há poucos dias, bateu nessa mesma tecla um interlocutor privilegiado do governo, Takanori Suzuki (por ironia, japonês!), ex-presidente do Banco de Tóquio. Para ele, "a abertura de nossa economia ocorreu em ritmo mais rápido que a capacidade de adaptação da indústria local".
Suzuki, consultor internacional, simplesmente estranhou que, no Japão, as informações sobre o Brasil reflitam tão pouco o país que ele conhece.
Mais que a apoteose da abertura comercial, que Suzuki também sabe ser difícil, longa e, muitas vezes, inviável, ele propõe que o governo brasileiro defina um modelo de política industrial que complete "os setores considerados estratégicos para o país".
Enfim, que não ceda à utopia -ou irresponsabilidade- dos que defendem, entre outras mudanças, uma virada de mesa no regime automotivo brasileiro, no momento em que as montadoras pensam em injetar US$ 20 bilhões no país até 2000.
Nesse contexto, deve-se lembrar: um país que se esconde dos fatos é, sobretudo, um país que se atrasa em relação à evolução tecnológica dos competidores, ficando cada vez menos dono de seu destino.
Isso é ainda mais grave quando se sabe que, com a estabilização da economia, este país estará apto a disputar investimentos com outras nações ditas emergentes, preparando-se para internacionalizar sua economia e não para "carnavalizá-la".

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