São Paulo, domingo, 16 de março de 1997 |
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Herdeiro do entusiasmo
ALEXEI BUENO
Castro Alves é, no Brasil, o poeta por antonomásia, assim como Eminescu ou Púchkin, para ficarmos entre os românticos, o são para a Romênia e para a Rússia. Em países que não tiveram ou não puderam ter uma Idade Média e uma Renascença literárias, é geralmente entre os românticos que surgem esses vultos emblemáticos. Se Gonçalves Dias conserva uma primazia patriarcal na nossa poesia de nação independente, a grande presença continua sendo a de Castro Alves, ainda que não pareça estar de todo esgotada a bizantina disputa de prevalência entre os dois. A Gonçalves Dias, é inegável, devemos cerca de uma dezena de obras-primas seminais da nossa poesia romântica, "I-Juca-Pirama" acima de todas, o maior poema do nosso romantismo e talvez de toda a poesia brasileira, obra de uma ímpar sabedoria dramática e estrutural. Sua correção de sintaxe, por uma ótica lusitana, é insuperável entre os poetas da escola, bem como o seu exato senso de medida. Castro Alves difere disso tudo. Sua linguagem é a mais acabada instalação de uma dicção nacional dentro do nosso romantismo. Parte de sua poesia, sobretudo a inicial, nasce sob o signo de um arroubo que nem sempre impede a deselegância e o mau gosto. Por outro lado, nele e na geração que o precedeu, os últimos arcaísmos lexicais que ainda prejudicam Gonçalves Dias desaparecem. O que define a superioridade de Castro Alves, dentro desse quadro, é a criação, entre os 17 e 24 anos, de 40 ou 50 poemas que são o apogeu da poesia romântica, não só no Brasil como na língua portuguesa. A primeira superioridade evidente de Castro Alves reside na riqueza metafórica. Bem longe do uso de simples comparações disseminado na escola, toda a sua poesia se constrói sobre a metáfora, às vezes em encadeamento incessante, como vemos em "A Queimada": "A floresta rugindo as comas curva... As asas foscas o gavião recurva, Espantado a gritar. O estampido estupendo das queimadas Se enrola de quebradas em quebradas, Galopando no ar. E a chama lavra qual jibóia informe, Que, no espaço vibrando a cauda enorme, Ferra os dentes no chão... Nas rubras roscas estortega as matas Que espadanam o sangue das cascatas Inseparável da metaforização, como aí está, a pletórica e barroca expressividade verbal (no quarto dos versos citados chega a se reproduzir o eco dos troncos que se partem), bem como o cromatismo e a plasticidade que fazem de Castro Alves o nosso Géricault ou o nosso Delacroix. E sempre a reconstituição sensorial por meio da metáfora: "Quando a fanfarra tocas na montanha, A matilha dos ecos te acompanha Ladrando pela ponta dos penedos". Específica também do poeta é a capacidade de corporificar metaforicamente os conceitos mais abstratos: "Sim! quando o tempo entre os dedos Quebra um século, uma nação, Encontra nomes tão grandes Que não lhe cabem na mão", em que, no ineditismo da imagem violenta, reencontramos o velhíssimo topos da imortalidade dos grandes homens. Há poemas construídos inteiramente pela sucessão de metáforas sugeridas por um mesmo objeto, como em "Aquela Mão", de um fetichismo obsessivo. E há, finalmente, os grandes momentos de união sinfônica de todas essas estesias metafóricas, plásticas e sonoras, como na abertura de "O Navio Negreiro" ou no final de "A Cachoeira de Paulo Afonso". Em certos momentos, a magia verbal do poeta nos aproxima do simbolismo: "Vem! formosa mulher -camélia pálida, Que banharam de pranto as alvoradas", ou neste verso, que chega a lembrar a arte de Camilo Pessanha: "Sobre as névoas te libras vaporoso...", Castro Alves é, coisa muito coerente num romântico, um poeta da altura, da ascensão fulminante, e nisso só se aproximaram dele na poesia brasileira o Cruz e Sousa da fase apocalíptica e dos últimos sonetos e o Augusto dos Anjos dos poemas longos. A maior traição à exata compreensão de uma arte como a sua é o uso de conceitos estéticos de um classicismo racionalista, para um poeta de uma linha que é justamente o oposto disso, e à qual se filiam, além da tradição hínica grega, o barroco, o romantismo, o expressionismo e o surrealismo. Mário de Andrade, no conhecido e indefensável texto sobre Castro Alves, antepõe-lhe o anseio de cultura de Álvares de Azevedo e a vontade de organização de Gonçalves Dias, exemplos, aliás, para a literatura brasileira. Como se toda a grande arte fosse obrigatório fruto de uma postura estudiosamente culta e organizada (o que nem todas as vidas propiciam). Não creio que de ordem e aplicação tenha surgido a arte de um Rimbaud, por exemplo, mas pode lá um país subdesenvolvido libertar a sua literatura dessas intervenções messiânicas? É estranho que um homem da cultura de Mário de Andrade, mesmo vestido com a casaca de Salieri, tenha tentado ignorar a totalidade de uma das linhas primordiais da poesia ocidental, a que vem do conceito grego de "mania", do entusiasmo, etimologicamente falando, passa pela inspiração romântica e chega, em plena origem da poesia moderna, ao "déréglément général de tous les sens" (o desregramento geral de todos os sentidos), na verdade uma única e mesma coisa. Mais lamentável no famoso ensaio, em verdade, é a questão da poesia abolicionista calcada na piedade e não na compreensão sociológica do problema, o que não merece nem comentário. A verdade é que a inesgotável riqueza da poesia de Castro Alves, a amorosa, a lírica, a épica, a social, não foi nem de longe suficientemente explorada pela crítica brasileira. Continuamos, à receita disso, com o homem e o poeta, intocados. O primeiro, morto aos 24 anos após uma vida vertiginosa, não teve tempo de decair de sua beleza física e moral de herói byroniano, nem de se converter a algum neoliberalismo do século passado. O segundo segue perpetuamente lido, para grande deleite de todos os que conhecem português. Numa época em que a poesia oficial é uma espécie de secreção dos departamentos de letras das universidades, a grandeza fulminante de Castro Alves figura como uma consolação e um escárnio. Texto Anterior: Românticos de vida curta e trágica Próximo Texto: As imagens do negro Índice |
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