São Paulo, quarta-feira, 19 de março de 1997
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Cuba vive segunda revolução, diz Robaina

COSETTE ALVES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para Roberto Robaina González, ministro das Relações Exteriores de Cuba, seu país passa por uma "segunda revolução", que consiste na condução de um processo de abertura econômica, sem perda da soberania e das conquistas sociais e culturais do socialismo. "O socialismo tem que se adaptar a esse mundo que mudou", diz. "A revolução tem de se relacionar economicamente com o mundo."
Nascido Pinar del Río, em 1956, região produtora de tabaco, onde formou-se em matemática, Robaina González combina a lógica de sua formação com a sofisticação e o traquejo necessários à diplomacia -sem ter perdido as características da origem camponesa. Carismático, ele goza de muita popularidade em seu país, onde é encarado como um jovem político promissor.
O primeiro encontro com o ministro aconteceu em Havana, a capital cubana, em novembro do ano passado. Fui recebida na chancelaria, uma bela mansão dos anos 20, que foi, em outros tempos, propriedade de um grande usineiro de açúcar.
Informal, mas elegante, Robaina lembra muito pouco a imagem tradicional de um chanceler: cabelos longos, calça, camiseta e paletó pretos, ele percorre, frequentemente, a distância entre a casa e o trabalho sobre uma bicicleta.
Convidou-me para caminhar a seu lado à frente de uma parada. Era uma homenagem do Ministério das Relações Exteriores cubano aos 40 anos do desembarque do iate de Granma e da fundação da FAR, as Forças Armadas Revolucionárias.
Em 2 de dezembro de 1956, 82 homens, liderados por Fidel Castro, desembarcaram em Cuba no Granma, vindos do México. Dali, 20 deles subiriam a serra Maestra e formariam o grupo que chegou ao poder em 1º de janeiro de 1959.
Na semana passada, o chanceler cubano passou discretamente pelo Brasil, onde se encontrou, em Brasília, com o presidente Fernando Henrique, ministros e senadores.
Na entrevista que se segue, Robaina González afirma que Cuba sairá da crise sem ajuda dos norte-americanos, estabelecendo relações comerciais sólidas e confiáveis com a Europa, a América Latina e outros países.
Cuba, segundo ele, está aberta para investimentos e passa por uma série de mudanças internas.
Preocupado com o bloqueio imposto pelos EUA, diz que a lei norte-americana Helms-Burton, que pune empresas com investimentos em Cuba, "foi formulada em um momento de embriaguez". "Só isso explicaria tanta insensatez".
Leia trechos da entrevista.
*
Folha - Qual o principal desafio que Cuba enfrenta no momento?
Roberto Robaina González - O maior desafio que enfrentamos é a sobrevivência diante de um país que quer assistir ao nosso desaparecimento.
Isso pode ser chamado de bloqueio, guerra econômica ou enfrentamento. Nós temos um país pequeno, que deseja manter sua independência perante um monstro, o país mais poderoso do mundo.
Tudo em meu país está subordinado a essa não-relação entre Cuba e os EUA. Há 37 anos nos dedicamos a esse problema. Muitos de nossos dirigentes históricos dedicaram sua vida a essa questão.
Sob esse conflito, nascemos e temos sido educados. Sobrevivemos. Já não iremos desaparecer. Isso é o mais importante.
Folha - Qual o propósito de sua viagem ao Brasil?
Robaina - Brasil e Cuba têm uma relação baseada em fatos culturais e históricos fortes e profundos. Relação que tem passado por momentos altos e baixos. Creio que hoje, essa relação está melhor do que antes, mas não está nem como o Brasil quer nem como Cuba gostaria. Estou aqui para identificar possibilidades para os dois países.
Folha - Como foi o encontro com o presidente Fernando Henrique?
Robaina - A minha visita também tem como objetivo dar continuidade a uma relação estabelecida entre os presidentes Fernando Henrique e Fidel Castro.
Colocamos à mesa assuntos importantes: vacinas, cooperação na experiência do médico da família e cooperação educacional. Há um intenso intercâmbio entre as universidades e professores.
Falamos também sobre intercâmbio esportivo. Mencionou-se, ainda, a possibilidade de a Petrobrás se interessar por investimentos em áreas que Cuba oferece. Senti uma disposição positiva do governo brasileiro e do presidente.
Folha - O sr. esteve também com o ministro Sérgio Motta, das Telecomunicações. Há interesses também na área de comunicações?
Robaina - Cuba aprovou uma lei para investimentos estrangeiros que abre setores como níquel, petróleo e comunicações.
Folha - Quais os setores em Cuba ainda fechados ao investimento estrangeiro?
Robaina - Saúde e educação.
Folha - O que Cuba oferece para atrair investimentos?
Robaina - Cuba oferece tanto quanto precisa de muitas coisas. O país, hoje, é uma oportunidade para qualquer ramo de negócios. Já tem uma infra-estrutura pronta, portos e aeroportos. Sua população tem qualificação científica e técnica. E tem uma localização geográfica privilegiada.
Folha - Nas reuniões de chanceleres latino-americanos tem sido possível algum acordo? Ou são apenas reuniões diplomáticas formais?
Robaina - Algumas delas são meramente formais, outras geram acordos importantes. Acreditamos cada vez mais na diplomacia que se coloca a serviço do concreto e não do formal. Talvez por isso eu seja tão informal.
Folha - Como harmonizar abertura econômica e regime socialista em Cuba?
Robaina - Concebo um socialismo que, entre outras coisas, seja moderno. Se não for moderno, não é socialismo. O socialismo tem de se adaptar a um mundo que mudou. Em Cuba, defendemos esse socialismo porque, graças a ele, hoje temos nível cultural e científico, temos esporte e cultura. Graças a esse socialismo, temos a cabeça erguida.
Dizem que a abertura na China é plural e flexível, a vietnamita também. O "império" diz que a única abertura que não é plural é a que estamos fazendo. Não entendo essa definição de plural aplicada somente a nós.
No mundo em que se fala de globalização, nenhum país pode ser independente. Somos independentes politicamente, porém é muito difícil ser independente economicamente, quando os países se inter-relacionam, quando se fala de uma nova ordem econômica internacional.
Folha - Qual a sua opinião sobre essa nova ordem econômica mundial?
Robaina - A minha opinião é a de que existe uma grande desordem mundial. Ou seja, de ordem não tem nada. Mas já nos preparamos para sobreviver nesse mundo. Sem retroceder no que já foi conquistado.
Não há a menor possibilidade de se negociar soberania e independência em assuntos que só ao país compete decidir. Mas podemos, e queremos, ter relações comerciais. Não queremos o modelo dos outros. Eles também não querem o nosso. Isso não impede que façamos negócios e projetos de acordo com interesses comuns.
Folha - Cuba estaria disposta a deixar de lado alguns traços tradicionais da revolução em troca de outras conquistas no campo econômico?
Robaina - A revolução foi evoluindo e se aperfeiçoando. Há princípios da revolução que não são negociáveis. A revolução de 1997 em Cuba é diferente da revolução ocorrida em 1959.
Folha - A abertura econômica seria uma segunda revolução?
Robaina - Acho que sim. No caminho de uma revolução não se pode dizer: "parei a revolução". A revolução é revolução quando não é estática, quando continua fiel aos seus princípios, mas evolui.
Acredito que a abertura econômica é um momento novo. A revolução tem de se relacionar economicamente com o mundo e para isso tem de estabelecer as regras do jogo. Por que estabelecemos as regras do jogo? Porque nós queremos investimentos estrangeiros, mas não queremos que haja uma invasão estrangeira.
Folha - Vocês discutem com economistas estrangeiros a sua abertura econômica?
Robaina - Precisamos que muitos no mundo conheçam o que fazemos, porque outro grande problema nosso continua a ser o muito que se fala de nós e o pouco que se fala conosco. O mundo precisa muito saber que Cuba não é o inferno que pintam nem o paraíso que queremos ser. Somos uma obra humana e, como qualquer obra humana, imperfeitos.
E digo mais: a perfeição não me agrada, seria muito chato e eu não teria nada para lhe responder.
Há muita gente que está nos descobrindo no novo século como se fosse novamente Cristóvão Colombo descobrindo a América.
Folha - Qual foi o PIB (Produto Interno Bruto, a soma das riquezas produzidas pelo país) do ano passado? Qual é a expectativa para este ano?
Robaina - A economia desacelerou de 89 a 92, com queda do PIB de 35%. Com o fim do socialismo no resto do mundo, e mais bloqueados que nunca, ficamos completamente sós. O período de 89 a 93 foi duríssimo. Em 1994, esse processo negativo cessou e, pela primeira vez, a economia cresceu 0,7%. No ano seguinte, o país cresceu 2,5% e, em 96, 7,9%.
O resultado não deve criar expectativa, porque é calculado sobre índices que haviam caído muito. O importante é verificar a tendência de crescimento. Devemos crescer um pouco mais neste ano.
Folha - Qual a sua opinião sobre as leis Torricelli e Helms Burton?
Robaina - Não quero chamar de lei porque respeito o direito. A lei Torricelli e a lei Helms-Burton são um coquetel jurídico.
Folha - Como assim, coquetel jurídico?
Robaina - Porque resultaram de graus alcoólicos diferentes. Eu acho que só podem ter sido concebidas em um encontro noturno de bêbados. Essa lei demonstra que os únicos loucos não são as vacas inglesas. Tão loucos como as vacas inglesas há congressistas americanos, capazes de aprovar uma lei desse tipo. Essa lei torna muito mais difícil a sobrevivência em 97.
Folha - O sr. tem alguma expectativa de que no segundo mandato do presidente Clinton as relações com Cuba possam melhorar?
Robaina - O real é não termos expectativas. Cuba já passou por vários segundos mandatos. Em nenhum segundo mandato de qualquer presidente americano tem acontecido nada diferente em relação ao primeiro.
Folha - Qual foi o melhor presidente dos EUA para Cuba?
Robaina - Desde menino sei que todos têm sido especialmente agressivos. A pergunta deve ser qual foi o menos pior.
Folha - Qual deles?
Robaina - Não creio que tenha a ver nem com presidentes nem com partidos. A agressividade deste país não mudou nem quando mudaram os partidos nem quando mudaram as pessoas. Desde 59, temos tido mais bloqueio e mais agressão.
Folha - Como o sr. analisa a curiosidade da mídia em relação ao presidente Fidel Castro?
Robaina - Há sem dúvida um componente muito importante na personalidade de Fidel: no seu modo de ser, ele é muito fiel aos seus princípios. Há uma pergunta muito popular em Cuba, que surgiu nos primeiros anos da revolução: o que é que o Fidel tem que os americanos não podem com ele?
As pessoas, independentemente de sua ideologia, respeitam aqueles que respondem a uma política de princípios, respeitam os que têm a testa erguida e voz própria. A mídia reconhece sua coragem e o admira.
Folha - Qual a contribuição da matemática à diplomacia?
Robaina - Ensina a pensar. Creio que a diplomacia precisa de gente que pensa. A matemática ajuda a tirar problemas complexos do caminho. Isso é necessário na diplomacia. Tirar os problemas complexos para poder avançar. A matemática tem lógica. Mas a matemática às vezes tem de ir contra a lógica, como na diplomacia às vezes é preciso ir contra a lógica.
Folha - O sr. trabalhou nas organizações de estudantes?
Robaina - Trabalhei muito tempo nas fileiras dos estudantes e depois da juventude. Até o momento em que passei a ter essa responsabilidade (no ministério).
Folha - O que predomina em suas decisões, a lógica ou a intuição?
Robaina - Depende do problema. Creio que há coisas em que o fenômeno da intuição é dado pela própria experiência. Hoje, com a pouca experiência que tenho em diplomacia, há coisas que posso intuir, mas creio que a primeira condição é não se apressar.
Tento não me apressar para que quando o problema surja eu tenha tempo de buscar os antecedentes. Acredito na obra coletiva, na contribuição de muitos, e mesmo que eu esteja convicto de uma coisa prefiro ter certeza de que outros também estejam.
Folha - Qual a sua prioridade na política externa?
Robaina - Não é possível investir sem antes nos conhecermos. Cuba tem uma prioridade: quebrar a grande barreira que os EUA têm colocado entre o mundo e nós. Deve-se atravessar essa cortina.
Creio que há muros mais importantes do que alguns dos que já foram derrubados -e esse não foi derrubado ainda. Para isso, perguntar sobre Cuba ajuda a que se descubra Cuba e que se converse com Cuba. Os investimentos vão chegar depois.
Quiseram nos arrancar do Caribe e da América Latina, mas felizmente estamos nos reencontrando. Essa é a nossa primeira prioridade em política externa: inserção na grande família latino-americana e caribenha à qual pertencemos.
Folha - Se pudesse mudar algo no mundo, o que o sr. mudaria?
Robaina - Eu creio que é muito difícil que alguém possa mudar o mundo sozinho.
Folha - A pergunta é hipotética.
Robaina - Seria muito importante mais justiça. Que desaparecesse a desigualdade exagerada. Não consigo entender como um mundo imensamente rico está tão mal distribuído.
Se a riqueza que temos estivesse melhor distribuída, seria a melhor contribuição que poderia se fazer ao mundo. Os ricos estão cada vez mais ricos, e os pobres que cada vez mais pobres.

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