São Paulo, sexta-feira, 21 de março de 1997
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Nick Cave se rende às canções de amor

STÉPHANE DAVET
DO "LIBÉRATION"

Menos de um ano depois de "Murder Ballads" (baladas de assassinato), o australiano Nick Cave lança com seus Bad Seeds o CD "The Boatman's Call" (que a Paradoxx promete editar em versão nacional em abril).
Desde o início dos anos 80, Nick Cave é tido com a encarnação de tudo que pode haver de mais funesto no rock. Como poucos outros, ele representou o teatro da crueldade e da autodestruição e se firmou como um dos mais poderosos autores de sua geração.
Hoje, dá a impressão de ter deixado seu figurino ensanguentado no camarim. É como se o lançamento do novo álbum, de inédita sobriedade, lhe tenha permitido libertar-se de seus demônios.
"Quando eu era criança", explica Cave, "meu pai me chamava para ler em voz alta para mim alguns trechos de seus livros preferidos. A cena do assassinato em 'Crime e Castigo', de Dostoiévski, ou trechos de 'Titus Andronicus', de Shakespeare. Eu não compreendia o que ele dizia, mas via seu rosto transformado, como se estivesse possuído pela leitura."
"A literatura permitia que ele se elevasse acima da banalidade do cotidiano. Quando comecei a escrever, procurei criar um ambiente com moralidade, cenário e personagens próprios, onde pudesse me refugiar, separado do mundo."
Cave optou por exprimir isso numa banda de rock, o Birthday Party. "O grupo me dava oportunidade de afirmar publicamente o asco que sentia do mundo. Não se pode ficar na esquina xingando e batendo nas pessoas. Com o grupo, podia fazer isso sem ser preso."
Sufocado pelo isolamento australiano, o grupo optou por uma vida no exílio. Ficou três anos na Alemanha. Lá, o Birthday Party se dissolveu e Nick, ao lado do fiel Mick Harvey, recrutou músicos para formar, em 83, os Bad Seeds.
Nessa época o cantor firmou as raízes de seu universo nos EUA. O cenário decadente do delta do Mississippi forma o pano de fundo mítico de suas canções. Cave começou a se alimentar do blues primitivo de Blind Lemon Jefferson e do canto de John Lee Hooker.
"Kicking Against the Pricks" (86) se divide entre lúgubres covers de country e blues. "The First Born is Dead" faz referências ao irmão gêmeo de Elvis Presley, que nasceu morto. "Elvis era doente, intoxicado por drogas, mas era muito comovente. Para mim, sua história é uma metáfora perfeita do apodrecimento dos EUA."
No final dos anos 80, o australiano passou a cantar a nostalgia, em discos como "The Good Son" (de 90, quando passou a morar em São Paulo, onde ficou até 93).
Agora, depois de externar mais uma vez suas obsessões assassinas, em "Murder Ballads" (96), guardou de vez a faca no armário.
Se antes seu fascínio pelas mulheres só pôde se expressar por meio de alusões mórbidas, um encontro o transformou. A história de amor que viveu com PJ Harvey, diva do novo rock inglês, e a separação, há alguns meses, lhe infundiram o desejo de pela primeira vez se mostrar sem máscaras.
As canções de "The Boatman's Call" falam simplesmente de sua paixão e de sua dor. "Ainda é muito difícil para mim falar dessas canções. Desta vez, não me refugiei no meu universo próprio. E estou me sentindo mais vulnerável."
Cave canta sem decoro. Sua voz, habituada a apresentar cantos demoníacos ou passionais, aqui transmite uma luz delicada e grave, lembrando a fragilidade de "Berlin" (73), de Lou Reed.
"Green Eyes" e "West Country Girl" evocam, sem citar seu nome, Polly Jean Harvey, a roqueira camponesa de Dorset, musa e amor perdido do ogro das antípodas.
Em seus discos anteriores, Nick Cave teria, sem dúvida, destinado a ela um martírio sangrento. Neste álbum, ele se contenta em vibrar de remorso e melancolia.

Tradução de Clara Allain.

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