São Paulo, sexta-feira, 21 de março de 1997
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Cantor incinera cadáveres

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REDAÇÃO

O CD "The Boatman's Call", de Nick Cave & The Bad Seeds, é irmão gêmeo de seu antecessor, "Murder Ballads", mas no sentido Caim-Abel do termo. Nick crema aqui todos os cadáveres que deixou insepultos por aquelas "baladas de assassinato" e entrega a seus fãs um disco de... amor.
É programático, não resta dúvida. Como "Murder Ballads" era um disco cerebral e milimetricamente construído, "The Boatman's Call" é o segundo termo da equação, o que a resolve.
A resposta, por ora, deve ser a de que o verdadeiro Nick não está em nenhum dos dois pólos, mas numa posição intermediária -e atormentada- à qual ele sempre esteve filiado.
O novo CD é, então, experimental -só poderia ser assim, para que um homem como Nick Cave pudesse falar de amor de forma desarmada.
Para atingir formalmente tal objetivo, não foi preciso muito -bastou a ele retomar de modo intensivo influência que sempre foi capital em sua arte, a do "crooner" canadense Leonard Cohen.
O CD é um inventário de "chansons" como as que Cohen faria, acrescidas sempre de um tom a mais de acidez na voz -poderosa como nunca, diga-se.
Com essa voz e com esse "approach", Cave, cavernoso, lamenta a perda do amor e clama por seu restabelecimento. As canções -"Into My Arms", "Lime-Tree Arbour"- são arrebatadas, emocionais, tristes, mas serenas. Nem parece Nick Cave.
No cúmulo, ousa plagiar, sem vergonha, o torpor desencantado de outra de suas influências capitais: Lou Reed -o de 72/73, de "Transformer" e "Berlin".
A introdução de "There Is a Kingdom" é citação confessa à canção "Perfect Day" (que recentemente voltou à baila, incluída na trilha do filme "Trainspotting"); quando começa a cantá-la, Nick engana o ouvinte e finge que vai cantar "just a perfect day...". Canta "just like a bird...", mudando a canção de direção. Fofo.
É certo que sua eterna amargura impregnada de conflito cristão transborda, aqui e ali, das arestas da serenidade. Ele ainda chora a maldade das pessoas ("People Ain't No Good") e chama por Cristo a cada instante ("Into My Arms", "Brompton Oratory").
Mas, arestas à parte, este Nick é só romantismo, em preces nostálgicas ("nos casamos embaixo das cerejeiras", conta em "People Ain't No Good"), perguntas repletas de certezas ("você é aquela por quem estive esperando?", filosofa em "Are You the One that I've Been Waiting for?"), desilusão conformada ("hoje ela pegou um trem para o Oeste", desespera-se em "Black Hair").
Diz-se que PJ Harvey é a tal mulher citada verso a verso. Se é assim, resta a constatação: poderosa essa mulher, que fez Nick Cave abandonar cadáveres femininos espalhados por sua carreira de poeta e conceber mais um álbum clássico para os anos 90 -e, particularidade, totalmente desinteressado das convenções correntes. Vida longa a PJ Harvey.

Disco: The Boatman's Call
Com: Nick Cave & The Bad Seeds
Lançamento: Mute (importado)
Onde encontrar: London Calling (tel. 011/223-5300)

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