São Paulo, sexta-feira, 21 de março de 1997
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Diversidade e volta à canção marcam a música dos 90

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Vive-se, na música popular, um momento de grande diversidade, de ampla liberdade e de crescente acesso às facilidades técnicas. Desponta, no plano estético, o reequilíbrio entre gênero e canção. Nota-se um certo retorno às sonoridades brasileiras, aliado ao impulso de criar, nesse mundo globalizado, cultura para exportação. Pode-se ver com otimismo a emergência de novos "centros regionais", como Recife, embora a tendência de internacionalização e concentração econômica também se manifeste na indústria fonográfica, criando padrões "competitivos" muitas vezes discutíveis -e alguns obstáculos para as produções menos convencionais. Essas são algumas das conclusões do encontro que reuniu cinco nomes da música brasileira, promovido pela Folha, no último dia 13.
Evitaram-se, propositalmente, os compositores que imprimiram suas marcas na canção brasileira dos anos 60 e 70. A idéia era flagrar um pouco da consciência mais recente sobre a produção musical.
Zélia Duncan e Chico César representam, cada um a seu modo, a reaparição em cena da canção, depois da relativa hegemonia do rock -universo ao qual pertenceu o ex-Titã Arnaldo Antunes, ainda que de forma multifacetada, com forte marca autoral, que levou para a carreira solo.
Luiz Tatit, um dos participantes da chamada "vanguarda paulista", traz sua dupla visão de músico e professor universitário. Fred Zero Quatro, do grupo Mundo Livre S/A, veio representar a movimentação musical de Recife, que permanece exuberante, apesar da prematura morte de Chico Science.
A Folha convidou, ainda, Carlinhos Brown que, por motivos particulares, não pode comparecer.
O resultado você lerá a seguir. O debate, organizado pela Coordenadoria de Artigos e Eventos da Folha, é o primeiro de uma série que deverá englobar as diversas áreas da produção cultural do país.
Folha - A música popular tem ocupado no Brasil um lugar muito privilegiado. Talvez ela possa ser considerada a arte por excelência do país, uma produção que atravessa todas as classes, com uma história muito rica e de muita qualidade estética, a ponto de ter ocupado, em décadas recentes, o centro mesmo do debate cultural no país.
A música popular, como se sabe, criou um diálogo com o repertório culto, adotou procedimentos literários, conversou com a música erudita e experimental e virou tese universitária. Foi alvo de uma imensa valorização, o que levou o ambiente cultural a permanentemente cercá-la de expectativas.
Há sempre uma expectativa em torno de para onde vai ou para onde vai deixar de ir a música popular. Espera-se, sempre, que algo aconteça. Uma nova bossa nova, um novo tropicalismo, um novo movimento.
É muito pouco provável que isso possa se repetir. Não há, como na época dos movimentos, muito a combater: vivemos hoje uma situação em que a liberdade de criação, não só pelo lado político, mas pelo lado estético, é enorme.
Mas temos novidades, como o aprofundamento da internacionalização. Para usar o jargão, a "globalização" tende a afetar a produção musical, não só pelo fato de a música internacional chegar mais e mais rapidamente, como também pelo fato de a música brasileira encontrar mais facilidades em mercados estrangeiros.
Eu proponho que os convidados, todos ligados a uma produção recente, comecem falando sobre como vêem esse panorama nos anos 90 e como imaginam que as coisas vão evoluir no terreno da música popular.
Arnaldo Antunes - Eu acho que não existe mais, desde a tropicália, a necessidade histórica, social, cultural de um movimento como foi a bossa nova, como foram a jovem guarda e o próprio tropicalismo.
A partir da tropicália, que foi uma espécie de movimento para acabar com os movimentos, instituiu-se a diversidade. E a diversidade, enquanto realidade cultural com a qual a gente convive o tempo todo, permite que a novidade possa despontar em muitas direções diferentes. Permite que a gente possa ter uma tradição que não caminha para o futuro numa direção unívoca.
Eu acho isso muito mais saudável, apesar de haver sempre muita gente, saudosa de movimentos, que fica reclamando: "Ah, depois da bossa nova não aconteceu nada" ou "depois da tropicália não aconteceu nada", quando está acontecendo muita coisa o tempo todo, inclusive o próprio trabalho dos protagonistas desses movimentos, que continua nos anos 70, 80, 90, cada vez mais se renovando e amadurecendo.
As pessoas dizem que depois da bossa nova não aconteceu nada e ninguém repara o quanto mudou o canto do João Gilberto nesse tempo todo... Não só isso, como os artistas que foram despontando nos anos 70, os Novos Baianos, o Luiz Melodia, a continuidade do Jorge Ben Jor, que teve o melhor de sua obra nesse período pós-movimento. A gente teve também Arrigo Barnabé, teve Itamar Assunção, teve a Rita Lee, que fez um trabalho maravilhoso nesse tempo todo. Depois tivemos o rock dos anos 80 e agora, a produção dos anos 90.
Há muita coisa acontecendo, sim. Há um leque muito diversificado e muito rico dentro do que a gente chama de música popular brasileira.
Folha - O que você acha que está ocorrendo agora, nos anos 90?
Antunes - Cada vez mais eu sinto dançar essa história de gênero. Cada vez mais os gêneros só servem para você transitar de um para outro. Essas demarcações compartimentadas -o pagode, a axé music, o rock, o reggae- são um pouco decorrência dessas ondas que a indústria fonográfica e a mídia criam para, no ano seguinte, inventar uma nova e descartar aquela anterior...
Eu acho que isso tende a dançar, como acho que a tendência é surgir, cada vez mais, artistas que eu chamo de inclassificáveis... Eu fiz uma música sobre isso e gravei com o Chico Science. Eu via nele, de modo muito forte, essa impossibilidade de você classificar, de você dizer: "Ah! acho que isso é isso e isso é aquilo".
Aqui nesta mesa, por exemplo, quase todos são um pouco representantes de uma coisa meio híbrida. Você diria que o Chico César, por exemplo, estaria dentro de uma linha mais MPB, mas "Mama África" é um reggae. O Skank também faz reggae, mas o Skank está mais ligado a uma tradição do rock... E o que o Fred Zero Quatro faz com o Mundo Livre é uma mistura, é um caldeirão.
Eu acho muito saudável essa possibilidade de convívio cada vez maior com a diferença e com a multiplicidade de informações. Eu sempre me senti identificado com a possibilidade de transitar e fazer o contrabando entre os diferentes universos musicais.
Isso é uma das coisas que eu acho que vem caracterizando a produção cultural dos anos 90. Não só a nossa aqui, mas também Marisa Monte, Carlinhos Brown, Cássia Eller, tanta gente, enfim, que foi pintando nos últimos anos.
Falo em anos 90, mas devo dizer que acho sempre muito chato e muito redutor esse negócio de você ter que falar em anos 70, anos 80, anos 90. Você acaba tratando a geração anterior como se fosse algo a ser substituído -e não é assim que acontece. A gente continua convivendo com os artistas dos anos 80, como Paralamas do Sucesso, como Titãs, como Barão Vermelho, como Legião Urbana, assim como a gente continua convivendo com artistas como Caetano, Gil, Jorge Ben Jor etc.
Eu acho muito interessante essa -cada vez maior, a meu ver- impossibilidade de classificação e essa convivência não-traumática com as diferenças. Isso, de certa forma, foi sugerido pela tropicália e está se tornando cada vez mais uma realidade cultural com a qual a gente convive cotidianamente -e dentro da qual a gente age como criador.
Digo como criador, porque eu acho que a mídia e o mercado trabalham um pouco na direção oposta, cada vez mais tentam fazer a coisa segmentada. Desde as rádios, que tentam se especializar num gênero, à mídia, que tenta classificar um determinado artista dentro de um gênero -e aquilo acaba sendo uma camisa-de-força, que não cabe muito bem nele. Mas, de qualquer forma, eu acho que quem está trabalhando com criação está muito pouco preocupado com isso. E talvez isso, de certa forma, reflita uma característica única da cultura brasileira: o jeito que a gente lida com as informações, que vem da nossa própria formação cultural. A própria coisa híbrida que a gente tem por formação cultural e que foi positivada por movimentos como a antropofagia e o tropicalismo.
Folha - Seguindo a ordem da mesa, vamos ouvir o Luiz Tatit.
Luiz Tatit - Eu acho que não há mais razão de ser para movimentos. Eu tenho a impressão de que isso não cabe mais. No entanto, é preciso também haver uma alteração no julgamento. Precisa haver um acompanhamento, até um pouco mais ensaístico, eu diria, da produção atual, criando o lugar de apreciação de cada compositor, de cada gênero, de cada coisa que está sendo produzida. O próprio compositor faz o seu lugar de apreciação -é isso o que eu quero dizer.
Ninguém precisa fazer um tipo de produção que venha preencher as expectativas da mídia. Ao contrário, a mídia é que tem que encontrar o lugar de avaliação daquela produção. Criar critérios para analisar aquilo que está sendo veiculado.
Hoje nós não temos movimento, mas nós temos estilos. Nós aqui presentes na mesa: há vários estilos completamente diferentes e todos em plena produção. Os estilos precisam ser julgados, precisam ser avaliados no seu lugar, naquele espaço em que foram criados. Como é a música do estilo, digamos, Zélia Duncan? Ou do estilo Chico César? O que eles fizeram na junção da letra com a melodia que deu esse produto? Se isso fosse avaliado nesses termos seria muito interessante. Nós estaríamos falando as novidades que a canção está produzindo atualmente nos diferentes estilos.
Essa diversidade sobre a qual o Arnaldo falou tem jeito de ser avaliada. Seria interessante se a crítica ajudasse no acompanhamento de tudo isso que está saindo em termos dessa nova junção, que gera esse produto novo, que é a canção que está surgindo atualmente.
E eu sinto que não há um lugar de julgamento para esses estilos. O lugar de julgamento é um só: é a questão da ruptura, é a questão do progresso, é a questão de estar atendendo ou não ao mercado.
Parece-me que a canção mudou demais, mas os parâmetros de avaliação, na hora em que a crítica vai fazer o seu comentário, continuam os mesmos. Sempre que se lança um disco e você vai ver como a mídia tratou, os critérios de avaliação são os mesmos que já foram pertinentes há tempos atrás.
Na época da famosa "linha evolutiva", na década de 60, isso não era critério. Foram os artistas, no caso o próprio Caetano, que chamaram a atenção para esse critério. Uma linha evolutiva é algo que se faz esteticamente para se avaliar se uma canção está contribuindo ou não para o futuro dela própria, da própria linguagem. Isso foi uma contribuição da década de 60.
Depois que isso foi incorporado, virou parâmetro para a crítica avaliar. E até hoje se busca quem está fazendo a linha evolutiva da música popular, quem está produzindo novidade etc.
Folha - Chico César, o que você acha?.
Chico César - Nós que fazemos música hoje respondemos diariamente a essa cobrança: "Ah, mas não tem nada de novo?". Tem gente que fala: "Ah, você é muito colado nos tropicalistas. Ah, o Arnaldo está fazendo uma coisa ainda em cima da poesia concreta, que está lá atrás". Ficam sempre nessa, buscando esse critério de avaliação do trabalho musical que talvez esteja realmente ultrapassado.
Por outro lado, quando perguntam sobre a necessidade de movimentos, eu digo que a gente tem focos. Focos: às vezes, movimentações mais visíveis, às vezes menos visíveis, mais discretas, mais sutis.
A gente tem, por exemplo, o caso do movimento mangue beat, que é um movimento, assumido como movimento, e de uma importância real como movimento. Não só para o local, para Recife, a comunidade onde surgiu, mas para todo o resto, desde que ele não se pretenda hegemônico.
Mas ele surgindo ali naquele lugar, naquelas condições, traz informações preciosas para as pessoas que estão produzindo agora, neste instante, e para as pessoas que já vinham produzindo antes. O fato de eles terem se posicionado como movimento deu uma visibilidade para todos os que trabalhavam nessa linha e também deu visibilidade para algumas questões que estavam no nosso trabalho -no meu, no do Arnaldo, talvez no de Caetano, de Gil, de Zélia.
A partir dos dados lançados por eles nós reavaliamos de certo modo a nossa própria produção. A minha produção, a produção de Lenine, de Zeca Baleiro, de Carlos Careqa. Mesmo que não tenhamos nos ligado àquilo que eles próprios chamaram de movimento. Nesse sentido, a existência de um movimento contribuiu bastante e continua contribuindo.
Outro aspecto que acho importante destacar, hoje, nos anos 90, é o de uma certa regionalização.

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