São Paulo, sexta-feira, 21 de março de 1997
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Diversidade e volta à canção marcam a música dos 90

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

"Se eu pensar em Caetano cada vez que fizer uma música, eu não faço nada"
(Zélia Duncan)
"Fico pensando como a letra está virando uma coisa banalizada"
(Fred Zero Quatro)
"Hoje em dia não é mais necessário migrar, migra quem quer"
(Chico César)
"Essa produção mais híbrida exige novos parâmetros"
(Arnaldo Antunes)
Até o momento em que eu vim da Paraíba para São Paulo, era necessário que um artista do Sul, do Norte ou do Nordeste se deslocasse do seu local de origem até o Rio ou São Paulo. Isso, de um tempo para cá, não é mais necessário. Criaram-se algumas condições de produção em Estados como a Bahia e Pernambuco -como podemos ver com a axé music e o mangue beat.
Pode-se dizer: "Ah, mas isso foi apenas uma coisa de mercado", mas o fato é que hoje em dia não é mais necessário migrar, migra quem quer, porque há condições. Foram se criando condições de produção naqueles centros. Até mesmo em Manaus. Eu não esperava nunca que viesse uma música de Manaus, como acabou vindo.
As pessoas moram lá, vivem lá e isso não as torna afastadas dos chamados grandes centros. Elas dialogam com essas realidades tanto do ponto de vista do equipamento e do ponto de vista técnico, quanto do ponto de vista da informação estética.
Folha - Vamos ouvir o que a Zélia Duncan tem a dizer.
Zélia Duncan - Bom, eu sempre me senti muito cobrada desde que lancei um disco como compositora. Quando lancei "Zélia Duncan", o primeiro pela Warner, comecei a dar entrevistas, e os caras falavam: "Mas, vem cá, você vai lançar um disco inédito? Todo mundo regravando, você não tem medo?" Eu dizia: "Tenho, mas vou fazer", porque era o que eu estava a fim de fazer na hora. E acho que se eu começasse a pensar muito nisso, começaria a pesar e a tirar a minha naturalidade para fazer. Se eu for pensar em Caetano cada vez que fizer uma música eu não faço nada, entendeu?
Bem, eu trouxe um negócio para ler aqui. Eu estava lendo um livrinho de crônicas do Antônio Maria e achei uma carta do Vinicius de Moraes para ele. O Antônio Maria já havia morrido. Vinicius dizia assim, em 1968:
"Às vezes eu fico pensando: não sei se você gostaria de estar vivo agora, meu Maria. Depois de 64 tudo piorou muito, o governo, o meu caráter, a música. Agora só se faz música para festival e se perdeu aquela criatividade boa e gratuita da década de 50. Todo mundo faz música com um objetivo: comprar apartamento, ter um carrinho, ganhar popularidade, dobrar o cachê, vencer o festival, namorar as moças, bater papo furado.
"Isso não quer dizer que os caras não sejam ótimos compositores. Eles o são. Mas tudo é feito com o espírito muito toma lá dá cá, cada um por si Deus por todos. Assim, a meu ver, perde a graça. Aliás, não é culpa deles, em absoluto, é o "esquema", como está em moda falar. Eles têm que estar na onda senão não tem apartamento, não tem carro, não tem cachê, não tem festival, o papo micha e as moças não dão. Ficam, por assim dizer, marginalizados, e aí nem 'O Globo', nem a Record querem nada com os infelizes.
"Em resumo, meu Maria, não se perdeu a música, perdeu-se a sua dignidade".
Bem, ficam cobrando da gente um monte de definições e querendo nos enquadrar, quando numa época rica pra cacete nem tudo estava esclarecido e compreendido, não é? Não que o que eu faço hoje seja genial, não é isso, mas vou fazer e pronto. Acho que é uma liberdade conquistada cada um ter uma cara e essa ser a cara da gente.
Nos anos 80 havia muito a rivalidade do rock com a MPB. As pessoas que faziam MPB se sentiam como heróis. Vamos defender o que há de melhor no Brasil, que é a música popular brasileira. Mas o rock falava na veia de todo mundo, era maravilhoso e é maravilhoso, tanto que o que está aí tinha que ficar mesmo. Eu acho que a música brasileira não precisa de mártir. Ela é soberana. Ela é maravilhosa. E eu vou cantar em inglês toda vez que eu quiser, tendo a música brasileira como um tesouro, um patrimônio para sempre.
Folha - A vez de Pernambuco...
Fred Zero Quatro - Para quem não me conhece, meu nome é Fred Zero Quatro, moro num lugar chamado Recife, Nordeste, e estou me sentindo um pouco estranho nesta mesa, porque aposto que muitas das pessoas aqui nem viram a minha cara ainda em lugar nenhum.
Vou falar de um modo meio fragmentado mesmo.
Sobre movimento. Concordo que não tem mais sentido essa história de movimento, muito menos, como o Chico César falou, essa história de movimento que se pretende hegemônico. O que eu acho que existiu nos anos 50 e 60 foram coisas que a mídia transformou em movimento. A bossa nova era o quê? Duas dezenas de pessoas de Copacabana, que de repente a mídia transformou em movimento nacional porque lá é que estava o centro da própria mídia.
O que vem ocorrendo agora no Recife também não é um movimento, nem pretendia ser. É uma cena, uma forma de tentar transformar algo pernambucano, algo marginalizado, algo de periferia em algo que superasse essa dimensão.
Como o centro da mídia nacional não está em Recife, precisamos ter a manha de criar uma linguagem epidêmica, uma linguagem que realmente conseguisse colocar a parabólica na lama.
Hoje em dia, acho que a nossa música pode ser considerada música brasileira e não música pernambucana, uma música que acabou, com o Chico Science, por ser divulgada até mesmo nos maiores festivais internacionais, na Europa e nos Estados Unidos.
A gente criou uma cena. O princípio básico do nosso primeiro manifesto sempre foi a diversidade. Muito diferente da bossa nova e mesmo do tropicalismo, que tinham uma sonoridade meio padrão. Na cena do Recife, Mundo Livre é totalmente diferente do Chico Science, da Nação Zumbi, totalmente diferente do Mestre Ambrósio.
A idéia era fazer uma metáfora usando o mangue como ecossistema, berço de várias espécies. Isso equivaleria à diversidade cultural, de batidas e de gêneros, do folclore do Recife.
Essa diversidade é uma característica muito própria do Recife, e bem diferente de Salvador, por exemplo, onde tem um troço de todo mundo seguir a batida do momento.
Também achei muito oportuna a carta que a Zélia leu e muito legal o que o Tatit falou sobre mercado.
O que acontece hoje no Brasil é o seguinte: muita gente fala de reforma administrativa, reforma fiscal, reforma agrária, mas pouca gente fala de se tentar reverter a maior herança autoritária que a gente ainda preserva, que é a estrutura de comunicação. A mídia toda é controlada por poucos grupos.
Não só privados, como centralizadores e autoritários.
Não bastasse a televisão, as emissoras de rádio mais ouvidas têm os esquemas de programação montados no Rio e em São Paulo. Ocorrem com isso desvios absurdos.
Num recente festival, em Recife, que reuniu bandas internacionais e de todo o Brasil, a noite mais forte foi com as atrações de Pernambuco -Chico Science, Mestre Ambrósio e Mundo Livre. Mas, curiosamente, nenhuma dessas três bandas toca em programação de rádio local lá em Recife.
São coisas que não são muito comentadas. Eu gostaria que, pelo menos, este debate servisse para tentar de uma vez por todas responder uma pergunta meio obsessiva de quase todos os jornalistas que chegam para me entrevistar: "Todo mundo adora vocês, não vejo ninguém falar mal, no entanto vocês vendem muito pouco...".
É meio absurdo supor que um jornalista não saiba como funciona o esquema: ou você aparece no "Fantástico", no "Faustão", no "Xuxa Park" ou sei lá em que outras coisas de bom gosto, ou não há espaço no dial, nas frequências de rádio!
Antunes - Queria complementar uma coisa que eu disse sobre movimentos. Quando eu falei que não acreditava mais em movimentos, estava justamente pensando em movimentos que tentassem abranger a tradição e apontar o futuro numa direção só.
É uma coisa diferente do caso do mangue beat. Ali, houve uma coisa bacana: a mídia não sabia direito como fazer, eles se anteciparam e deram um nome. E deixaram claro que Mundo Livre é um som, Mestre Ambrósio é outro, Nação Zumbi é outro. Foi uma coisa bacana, o fato de vocês poderem já se antecipar e dizer: "Não, nosso barato é esse mesmo, a diversidade". Eu adoro o manifesto do primeiro disco do Chico. É maravilhoso.
Zero Quatro - Essa história de mangue beat também teve um lado de brincadeira. O Chico tinha uma música chamada "Mangue Town", que levantava todo mundo nos shows. Eu falei, bom, vou fazer um hino do Mundo Livre -e chamei de "Mangue Bit", com i. Bit, de unidade de informação. Já foi uma sacanagem, porque eu sabia que os jornalistas colocariam "beat", de batida...
Folha - Até que ponto vocês acreditam que a mídia, as rádios, o mercado e as gravadoras, hoje no Brasil, têm realmente poder para definir o que vai ser produzido e o que vai ser sucesso?
Antunes - Eu acho que sempre existe o dado imprevisível, senão não teria muita graça lidar com isso. A gente não faz propaganda, a gente faz música. Não há essa previsibilidade -"vou atingir o público alvo X, que é de tal classe e de tal idade". Eu acho que sempre existe o imprevisível, e sempre as rádios podem sair tocando, de repente, uma coisa que não estava prevista.
Muitas vezes a rádio é pressionada pelo público a tocar coisas que inicialmente não tocariam. Eu acho que a gravadora aposta em alguma coisa e, às vezes, isso dá certo. Mas depois não dá mais -e acabam tendo que inventar uma outra.
Geralmente os artistas que ficam muito dentro dessas ondas que as gravadoras criam, que são muito manipuláveis, têm uma duração de trabalho muito curta. E os artistas que têm um trabalho autoral próprio podem ter até mais dificuldade, inicialmente, de penetração, mas acabam se tornando mais duradouros.
Há espaço para tudo. Existe espaço para armação, mas existe também o espaço para quem tem um trabalho autoral próprio e original. A mídia inevitavelmente acaba reconhecendo o que tem valor. Eu acredito que existe uma força popular mesmo, que acaba pressionando.
Eu acho que inevitavelmente Mundo Livre vai tocar nas rádios. É muito duro você esperar enquanto um trabalho seu não está tocando. Mas a informação no Brasil roda com uma lentidão muito grande. Tem muita gente que até hoje nem sabe que eu saí dos Titãs.
César - Hoje em dia é cada vez mais comum que o primeiro disco de um artista seja feito antes de ele chegar à gravadora. As gravadoras, cada vez mais, não querem investir no artista novo. Então, o que acontece? O cara pede o dinheiro do irmão, R$ 3 mil, produz o disco, grava, fica devendo, pede às tias, e vai deixando o disco nas lojas ou no entreposto de produtos naturais...
Alguns fazem chegar esse disco às mãos das gravadoras, dos produtores, da crítica -talvez interesse. Eu digo isso por experiência própria. Meu primeiro disco eu banquei. No meio do processo surgiu uma gravadora interessada, a Velas. Vendi baratinho para eles e foi legal.
Por um lado, é bom: pelo menos eles não se metem muito. E se o primeiro você fez assim, fica mais fácil você fazer o segundo, o terceiro e o quarto. Você fala assim: "Olha, eu lhe dou pronto". Aceito um parceiro, que é o produtor, o cara que, a partir do momento que ela se interessa, começa a mandar para ficar perto, para ver. Eu acho que isso está se tornando cada vez mais comum.
Zero Quatro - Eu acho que seria legal abrir um espaço no Brasil que permitisse ao compositor prescindir desse esquema de vender 1 milhão, 2 milhões de cópias. Ninguém precisa vender um milhão de cópias para sobreviver.
Até que ponto você quer realmente que seu trabalho chegue indiscriminadamente a 1 milhão de pessoas? Até que ponto você acha que 1 milhão, 2 milhões de pessoas vão realmente assimilar o que você quer?
Em termos de mercado, eu acho que o legal seria tentar mobilizar circuitos. Circuitos alternativos, que permitissem a quem tem, por exemplo, uma banda com potencial de atingir 100 mil pessoas, trabalhar com liberdade total para experimentar coisas, dentro de uma determinada linguagem. Que essa banda tenha realmente acesso a essas 100 mil pessoas.
Folha - Eu acho pertinente o que o Fred Zero Quatro está falando. Embora a indústria cultural no Brasil venha crescendo e se diversificando enormemente -o que já é claro na carta do Vinicius, de 68, que a Zélia Duncan leu-, ainda temos um mercado estreito. Nos Estados Unidos e na Europa, há espaço para as mais diversas formas musicais, gêneros etc.
Aqui, parece que só cabe uma coisa por vez: é rock, é axé, é isso ou aquilo. Acabamos ficando com um fundo musical muito monocórdio...
Tatit - Eu acho que esse fundo monocórdio está sujeito a isso que nós estávamos conversando, que o Arnaldo começou falando e que o Fred reforçou. Realmente, quanto às leis do mercado, nós podemos ficar sossegados, porque elas não são exatas. De repente alguma música que você não imaginava acaba varando aquela coisa que parecia tão fechada, acaba penetrando e se expandindo.
Eu acho que quanto a isso a gente pode ficar sossegado. As coisas acabam acontecendo, basta elas terem sido gravadas, terem sido produzidas, terem chegado a disco pelo menos.
Eu acho que a nossa época é privilegiada. A década de 80 foi muito pior em termos de condições de gravação. Não havia jeito de algum artista se projetar se não começasse de dentro da gravadora, planejado pela gravadora -até o repertório e os instrumentos. Nós tivemos solicitação de usar tais instrumentos para que a música pudesse sair...
Àquela época havia um dinheiro muito curto nas gravadoras, mesmo as multinacionais. Elas não podiam ter erro em termos de lucro. Tinham que chegar ao objetivo muito claramente, por isso os artistas saíam de dentro. Eles não pegavam artista que estava trabalhando e traziam para o mercado.
Tinham que ser produzidos lá dentro para não haver perigo, não haver percalços. Hoje não, hoje há mais dinheiro e a possibilidade de se chegar ao disco, fora das gravadoras, é bem maior.
Eu tenho a impressão de que daqui para a frente os grupos alternativos vão pulular. É questão só de tempo.
Por isso, eu acho que nem há tanta necessidade de nós falarmos de mercado. Todas as situações em que eu participo de debate sobre música popular, parece que a única coisa que dá para falar é a respeito do mercado.
Os produtos, as canções que são feitas exatamente por causa do mercado ou independentemente do mercado, não são discutidos, não são nem apreciados.
E, no entanto, as músicas estão com uma estilização extraordinária atualmente. São estilos os mais diversos e interessantes, com novas propostas artísticas, mesmo dentro das canções. A gente analisa pouco esse lado.
Eu sugeriria, por exemplo, um exercício: e se nós nos puséssemos na condição do crítico, do jornalista? O que nós falaríamos hoje de um disco ou de uma canção, por exemplo?
Você não vê a análise de uma música. As músicas são todas diferentes, todo mundo que compõe sabe disso. Cada música é um filho novo, é uma coisa nova, mas por que aquilo não é analisado? Como nós analisaríamos esse estilo inclassificável que nós temos hoje, já que nós não podemos encaixá-lo em movimento?
Antunes - É, eu acho que essa produção mais híbrida exige novos parâmetros. Eu acho que não há um critério único para avaliar isso que a gente chama de música popular, e acho que cada artista até requer um olhar diferente do outro.
Acho lamentável, muitas vezes, o que a gente acaba lendo nas críticas musicais. Falta parâmetro, falta critério, e, muitas vezes, surgem preconceitos -por exemplo, esses termos, como "papo cabeça", essa defesa da mediocridade completamente estúpida e preconceituosa. Eu acho isso lamentável. Você achar que o legal é ser burro, como se pensar diferenciasse você da diversão. Não, na verdade, muitas vezes um prazer vem junto com o outro.
Eu acho que a grande felicidade, a meu ver, de uma canção bem resolvida, é a questão da adequação: adequação da letra à linha melódica. Eu acho que essa necessidade de adequação vem se amplificando, cada vez mais, em outros níveis, como o arranjo, a produção escolhida, os planos da mixagem, a postura de palco, o clipe.
Eu acho que o valor absoluto de uma canção está sendo um pouco posto em crise pela sonoridade que vem vindo desde os anos 80. Acho que uma interpretação errada, um arranjo pasteurizado ou um timbre inadequado, tudo isso pode pôr a perder uma boa canção. Acho que tudo isso tem que ser levado em conta. Sinto muita falta de ver o contexto de cada artista nas apreciações.
Folha - Vamos ouvir um pouco a Zélia e Chico sobre isso?
Duncan - Eu não acho muito saudável a gente se basear em críticas, mesmo porque o que eu vejo de crítica no Brasil são coisas sempre muito pessoais e vaidosas. É complicado. Mesmo quando falam muito bem eu desconfio. Quando falam muito mal eu também desconfio. Eu procuro ter minhas referências, as pessoas nas quais eu confio. E vou vendo um pouco o que está saindo, o que está se dizendo. Eu só fui sacar quem eu era através dos outros.
Nunca tive uma raiz muito definida. Nasci em Niterói, com 6 anos fui para Brasília, morei lá 16 anos, não cantava rock, aí voltei para cá, depois fiz essa viagem aos Emirados... Quer dizer, eu não tenho, nunca tive uma veia muito definida. Eu queria cantar. Quando descobri o violão de aço e as coisas que eu queria dizer pela minha própria boca, as coisas começaram a mudar um pouco.
Acho que uma coisa importante para o artista é trazer o movimento de fora para dentro da gravadora. E ter como meta a música, que é o mais importante. A minha grande ambição é sempre melhorar.
Folha - Chico, você já esteve dos dois lados, como jornalista e, agora, compositor...
César - Estava lembrando aqui exatamente da época em que eu já não tinha mais holerite. Tinha sido demitido da revista "Elle", e eles me deram uns discos para escrever a respeito.
Um deles era o "Ê Batumaré", do Herbert Vianna. Outro era o disco do Edson Cordeiro e outro era uma trilha de 007... Eu tentei ver os discos de dentro, a lógica daqueles apanhados de canções e a forma como cada canção foi trabalhada. Eu não queria me colocar numa situação de fã do Herbert -que eu era- e também não queria deixar de falar algumas coisas só porque era um colega. Queria analisar as canções: entender se o cara teve êxito naquilo a que ele se propôs.
Hoje, quando faço discos, leio as críticas a mim ou a outros discos que eu ouvi e fico pensando: o cara não está falando das músicas, não está falando do disco... E eu particularmente gosto de crítica. Eu leio tudo. Acho importante o papel da crítica, como acho importante o papel das gravadoras.
Afinal, o que a gente faz tem um quê da arte, um quê de entretenimento, um quê de indústria, de negócio -mesmo quando você pede emprestado ao seu irmão já é um negócio, porque você vai ter que pagar, não é?
Zero Quatro - Estamos falando aqui sobre canção e adequação de música e letra, e fico pensando como a letra está virando uma coisa absurdamente banalizada. O Arnaldo falou sobre o preconceito contra o que é chamado de "cabeça"... Acho que há toda uma geração condicionada a ter um certo preconceito contra qualquer coisa que soe um pouco distante do linguajar do cotidiano, diferente do linguajar da tribo. É uma coisa triste.
Lembro de uma das músicas que mais cantei na adolescência, "Ouro de Tolo", do Raul Seixas, lá por 73... Era uma letra que rejeitava exatamente o que o Vinicius fala na carta que a Zélia leu. E tantos outros exemplos... Isso não era algo fora da média, era a média!
Hoje em dia, a média é o descartável. A média é o que pega fácil, visando o retorno imediato. Tudo de acordo com o que o mestre mandar. Qualquer coisa que soe um pouco mais reflexiva, um pouco mais fragmentada, é vista como incômoda, de mau gosto ou "cabeça".
Folha - Você acha, então, que houve um empobrecimento?
Zero Quatro - Foi uma geração que cresceu assistindo Xuxa, não é, cara? Eu estava vendo outro dia o maior linguista americano, Noam Chomsky, num debate na TV Cultura. Juntaram várias pessoas dos maiores veículos de imprensa para entrevistá-lo. Em nenhum momento foi citada a Rede Globo! Eu acho que uma coisa reflete a outra. Enquanto não se tiver coragem de olhar realmente o que acontece no Brasil, fora da tela, vai ser difícil reverter isso.
Tatit - Eu não sei se a gente está se entendendo nesse momento. Nós começamos dizendo que nós estamos vivendo uma fase de diversidades e parece que você está falando de uma padronização emburrecida...
Zero Quatro - Eu acho que essa diversidade é saudável, mas não sou tão otimista assim de achar que o que é legal fatalmente vai ser adotado, vai ter um espaço.
Tem uma possibilidade de ter espaço para tudo, mas isso não vai cair do céu, entendeu? Eu não acho legal que se fique esperando por um acaso do biorritmo do dia do cara... Um dia ele pisa numa casca de banana e a música vai tocar no rádio.
Tatit - Eu tenho a impressão que o espaço do produto padronizado sempre haverá. Eu digo isso porque senão a gente fica esperando uma situação utópica, ideal.
Zero Quatro - Resta saber se o espaço do alternativo sempre haverá também...
Tatit - Eu acho que só há alternativo quando há dinheiro. Porque a música alternativa é feita com excedente. Tanto que a Inglaterra e os Estados Unidos sempre tiveram os independentes.
Zero Quatro - São duas coisas: onde há dinheiro e com quem está o dinheiro, não é? Porque no Brasil temos o recorde mundial de concentração de renda. Para existir música alternativa, tem que existir quem compre música alternativa.
Você diz: "Ah! o mercado fonográfico brasileiro cresceu tantos por cento neste ano". Foram vendidos não sei quantos milhões de discos. Mas eu acho que cada vez mais se concentra, se reduz o número de artistas que conseguem vender... É a tendência geral da indústria brasileira. A indústria fonográfica não é diferente das outras indústrias.
Folha - Creio que o Fred está tentando colocar a situação da música no contexto geral da economia brasileira. Vivemos num cenário de concentração e exclusão.
Transpondo-se isso para a indústria fonográfica, poderíamos chegar a um cenário que estaria condicionando os padrões estéticos.
É plausível você pensar que, nesse tipo de mercado que se está constituindo no Brasil, que é muito internacionalizado, muito aberto, haveria uma pressão natural para a adoção de modelos "competitivos" de canção: produtos que pudessem circular aqui e, ao mesmo tempo, no grande mercado internacional, segundo suas regras. Esses produtos tenderiam a ser mais controlados, mais "medíocres". O que vocês acham disso?
Antunes - Eu acho o seguinte: tem coisa boa que faz sucesso, tem coisa ruim que faz sucesso. Tem coisa boa que não faz sucesso, tem coisa ruim que não faz sucesso.
Muitas vezes uma coisa é considerada impopular apenas porque não tocou no rádio. Se tivesse tocado, teria atingido certamente um público maior, teria sido sucesso e todo mundo cantaria.
Apesar de o Tatit dizer que atualmente há mais grana e mais espaço para coisas alternativas, eu sinto que as rádios estão arriscando menos. Na década de 80 arriscava-se mais. Uma história pessoal: fiquei muito surpreso quando a música "O Pulso" estourou nas rádios sem a gravadora fazer nada. Não era música "de trabalho". De repente uma rádio começou a tocar essa música, que tem um certo grau de estranheza -que não faz mal a ninguém-, e ela virou sucesso...
Folha - Acho que já estamos na hora de encerrar. Vou pedir ao Tatit que tente uma síntese, se é possível.
Tatit - Nós resvalamos pelo aspecto estético e achei gostoso quando entramos por aí, mas é impressionante como o mercado domina o debate.
É impressionante como isso é imperioso.
Em 72 vi um show histórico que o Gil fez na USP. Ele tinha chegado de Londres, e ficou todo mundo exigindo que ele se expressasse mais politicamente. E ele não querendo falar daquilo, querendo mostrar as músicas novas que tinha composto em Londres.
Lá pelas tantas, ele se irritou um pouco com aquelas questões que os estudantes colocavam e falou sobre a "Bíblia", citando a célebre passagem do "dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus".
Às vezes a gente fica o tempo inteiro só com essa questão das coisas que são de César, não é? Quem é que vai investir, quem é que tem o dinheiro, quem não tem. Eu acho que a gente tem que participar e tem que estar consciente disso também. Tem que saber onde é que a gente está entrando. Mas eu sinto um pouco de necessidade de conversa sobre o produto, sobre o produto estético, como é que ele está saindo.
Folha - Você não acha que um pouco da dificuldade de se discutir a questão estética está na própria diversidade da produção? Você se arriscaria a fazer uma apreciação da diversidade presente na mesa?
Tatit - Eu acho interessante notar que os trabalhos estão sendo extremamente singulares. Eu tinha comentado com o Chico, antes de a gente entrar aqui, que fazia muito tempo que um tipo de música como a que ele está fazendo não vingava comercialmente. Talvez o último tenha sido o Djavan, ele mesmo disse. Esse tipo de coisa fazia muito tempo, realmente, que não acontecia e aconteceu neste momento.
Eu sinto que a música mais de gênero, como de uma certa forma fica sendo o movimento mangue beat, também é muito forte e está tendo espaço.
A Zélia toda hora envereda para a música passional também. Ela tem a música da repetição, da tematização, mas toda hora envereda para a música passional, como faz o Chico também.
Esse tipo de trânsito, na verdade, ocorre em três categorias, que eu sempre cito. É a categoria da música mais repetitiva, em que os temas são recorrentes. Mas toda vez que a gente faz música muito repetitiva sente necessidade de estender as vogais e criar o clima romântico, que acontece nas músicas da Zélia e acontece na música do Chico, não é?
No caso do Arnaldo, em que parecia que isso nunca ia acontecer, de repente saiu "Alta Noite", e saiu "Desce", que é uma canção que precisou estender as vogais de uma certa forma, porque ele estava precisando falar esse conteúdo também.
Esse tipo de coisa eu acho que está acontecendo hoje. A gente transita o tempo todo entre canções que precisam se libertar da reiteração e ao mesmo tempo precisam se libertar do eterno romantismo. E precisam expor a figura de quem canta, de quem interpreta. Essa é a terceira categoria: a dicção. Quer dizer, a dicção da pessoa é exatamente ela poder transitar sobre as categorias e dizer quem é ela ali. É o timbre.
Eu tenho a impressão de que essa noção de dicção incorpora muito a possibilidade atual de você poder transitar entre os gêneros dentro da produção de cada um e dentro de uma mesma canção.
Se a gente fica insistindo muito no gênero, como foi o caso do rock, isso tem retaliação depois. Por exemplo, eu tenho a impressão que quando o rock tomou a dianteira como algo absoluto, durante uma certa fase, ele teve uma retaliação da música sertaneja.
Para mim, a música sertaneja não foi apenas uma questão de era Collor, foi uma reação ao rock. Ah, é música só de reiteração? Só de estímulo físico? Então, nós vamos falar da melodia, do romantismo -e aí se exacerbou daquela forma um pouco kitsch demais.
Daí essa volta de coisas como a antiga canção popular, que está sendo retomada, mas já é uma outra coisa. Ela já veio totalmente eletrificada e totalmente assimilada aos recursos tecnológicos, que hoje são exuberantes.
Essa nova canção que está surgindo eu tenho a impressão que já é algo que faz a síntese desse conflito entre melodia e gênero. Por melodia e gênero, entenda-se a música mais romântica de um lado e a música mais pulsativa do outro. Tenho a impressão que hoje a música está sintética, você transita, você faz música de pulso e música romântica ao mesmo tempo.
Sai aquele produto que não é nem uma coisa nem outra, mas expressa a dicção, uma palavra de ordem que você está querendo dizer. Eu tenho a impressão que esse trânsito é a característica de hoje: poder enveredar para a duração, poder enveredar para os motivos que se reiteram e poder dizer que aquilo que você está emitindo é a sua maneira de falar, ou seja, a sua maneira de cantar, a sua maneira de dizer. Eu acho que é isso.

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