São Paulo, sexta-feira, 21 de março de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Xerocando seres vivos

HENRY I. SOBEL

O dia 23/2/97 teria sido um domingo igual a qualquer outro, não fosse a reportagem na primeira página do "New York Times" antecipando o experimento que seria divulgado alguns dias depois pela revista "Nature", a prestigiosa publicação científica inglesa.
Em julho de 1996, na pequena cidade de Roslin, no interior da Escócia, havia nascido Dolly, uma saudável ovelha como tantas outras que pastam pelas colinas da região. Com uma diferença fantástica: Dolly não foi gerada de forma natural, não foi fruto de um cruzamento nem mesmo de inseminação artificial. Dolly foi produzida em laboratório, a partir de uma única célula da mama de uma ovelha adulta.
Ian Wilmut, embriologista que até então vivia num tranquilo anonimato, havia conseguido, pela primeira vez na história, criar um animal idêntico a outro já existente, a chamada clonagem.
A humanidade não conteve a reação de assombro diante da concepção extraordinária daquela ovelha de focinho rosado e olhar dócil. Como acontece geralmente com as notícias científicas, a importância da informação não está no fato em si, mas nas perspectivas que se apresentam a partir da descoberta.
Wilmut escancarou abruptamente a porta do futuro e nos fez vislumbrar cenas estranhas. A experiência provocou um misto de aplausos e repulsa, admiração pela proeza científica e temor de que ela se estenda em breve aos seres humanos.
O Vaticano reagiu com veemência à notícia, exortando todos os países a criarem com urgência leis para proibir a clonagem de seres humanos. Vários governos constituíram imediatamente comissões para analisar as dimensões científicas e éticas da clonagem.
Não há dúvida de que a técnica desenvolvida na Escócia pode prestar serviços inestimáveis para a humanidade, aumentando a produtividade de animais e proporcionando curas para diversas doenças. Os benefícios potenciais da clonagem são enormes. Infelizmente, os perigos também o são.
Por enquanto, apenas os animais são clonados. Apesar disso, já não se pode considerar neurótica a preocupação com os efeitos sinistros que a vulgarização da clonagem acarretaria.
A história nos ensinou que a ciência não tem consciência. Se há, por um lado, cientistas e médicos de elevada moralidade, que analisam as possíveis consequências dos seus atos antes de praticá-los, há também aqueles que se entusiasmam com a pesquisa científica em si, sem levar em consideração se é eticamente correta a finalidade da mesma ou se o são os meios utilizados. As experiências do "doutor" Mengele com gêmeos nos campos de concentração nazistas são um terrível exemplo de "ciência sem consciência".
Há quem diga que os tempos mudaram e que a sociedade de hoje não permitiria tais abusos da ciência. Será? Tenho sérias dúvidas quanto a se a humanidade está realmente preparada para assumir a responsabilidade coletiva de discernir o bem do mal, o certo do errado, o moral do imoral.
Não pensem que estou condenando a priori a experiência do embriologista escocês. Em princípio, sou plenamente a favor da pesquisa científica em geral e da engenharia genética em particular. A dúvida teológica fundamental que a bioética formula é se temos o direito de interferir na natureza. E a resposta da doutrina judaica é um categórico "sim".
De acordo com o judaísmo, nós, seres humanos, somos parceiros de Deus na missão de aperfeiçoar o mundo. É, portanto, a obrigação de cada indivíduo fazer uso da inteligência, da imaginação, da criatividade que Deus lhe deu, utilizando esses dons para melhorar a vida na Terra.
A natureza, com seus acertos e erros, não é intocável. Nós podemos e devemos fazer tudo ao nosso alcance para remover os obstáculos que coloca em nosso caminho. Negar isso é resignar-se à doença, às deformidades, à dor. Negar isso é renegar toda a ciência e a medicina.
O desenvolvimento científico visa, em princípio, o bem da humanidade. Isto não se discute. Discutível é o uso que às vezes se faz das descobertas científicas. Nem tudo o que é tecnicamente possível é moralmente correto.
Curiosamente, certos avanços da ciência tornam a religião -ou algum tipo de código moral- cada vez mais relevante. Existem limites insuperáveis de ordem ética nas experiências científicas. A clonagem poderá ser a grande questão ética e filosófica do século 21.
Dificilmente se poderão proibir experiências dessa natureza. Mas é imprescindível que sejam sujeitas a um controle social e legal. É preciso que esse tipo de trabalho seja acompanhado por pessoas de grande discernimento moral -representantes da sociedade civil, médicos, líderes religiosos e outros-, que consigam traçar uma linha demarcatória entre o progresso científico e a manipulação da vida.
Não é o caso de entrar em pânico nem de fazer previsões apocalípticas. Mas confesso que sinto certa apreensão diante desse mais recente avanço da genética. Há um quê de arrogância em reduzir o mistério da criação a uma experiência de laboratório.
E não posso deixar de me questionar sobre como seria um mundo repleto de clones humanos. Onde ficaria a singularidade de cada indivíduo, a tão fundamental unicidade do ser humano, se essa unicidade fosse negada pela possibilidade de fazer diversos exemplares de uma pessoa?
Aquilo que ocorreu naquela pequena cidade da Escócia toca uma nota dissonante no coração de todos aqueles que acreditam numa força criadora, quer a chamemos de Deus ou não. Os olhos ternos da ovelha Dolly me parecem estranhamente vazios. Será por falta de uma centelha divina?

Texto Anterior: Um pólo de energia e empregos no Nordeste
Próximo Texto: Cumprimento do dever; O valor da escola particular; Autoria contestada; Basta; Barbada
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.