São Paulo, quarta-feira, 2 de abril de 1997
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Precatórios e responsabilidades

WALTER CENEVIVA

Os interesses políticos em confronto na CPI dos Precatórios têm levado as fontes de informação a um açodamento inconveniente, que tem produzido notícias distorcidas ou erradas, sem nenhum benefício para a apuração dos fatos e a determinação de seus responsáveis. Estas anotações têm a pretensão de produzir algum esclarecimento a respeito, estritamente na órbita do direito constitucional brasileiro.
Antes, porém, é necessário lembrar que o escândalo tem origem remota no vergonhoso calote que o poder público brasileiro aplica sistematicamente em seus credores, ano após ano.
O ganhador de ação judicial contra a União, os Estados e os municípios torna-se credor de suas fazendas (nome pelo qual os órgãos federais, estaduais e municipais são representados em juízo). Os créditos são cobráveis só no fim do processo. Nesse momento, o credor requer ao juiz competente que expeça um ofício à entidade pública devedora, impondo-lhe que pague o que deve.
O momento de requerer a expedição do tal ofício, chamado de requisitório ou precatório, nasce quando a sentença faz o que os juristas chamam de "coisa julgada". Essa expressão define a especial qualidade adquirida pela decisão judicial se não for possível modificá-la por qualquer recurso.
Para chegar à coisa julgada, o credor tem de pagar, durante muitos anos, nunca menos de muitos anos, as penas do inferno judiciário. A filosofia processual imposta por lei aos advogados públicos é a de recorrerem de tudo, ainda que sem razão, ainda que os tribunais tenham dezenas, centenas ou milhares de vezes recusado a pretensão da administração.
Em manifestação recente, Theotonio Negrão, um dos grandes juristas deste país, disse que "é verdadeiramente inacreditável que o poder público, a quem compete a tutela do direito, seja o mais renitente e às vezes o mais chicanista de todos os réus, interpondo uma pletora de recursos infundados, com a manifesta e pouco honesta intenção de adiar indefinidamente o cumprimento de suas mais elementares obrigações".
O artigo 100 da Constituição Federal dispõe que os pagamentos devidos pelas fazendas, em processos judiciais, devem ser feitos exclusivamente na ordem cronológica da apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos. Todos os precatórios apresentados até 1º de julho de cada ano devem ser incluídos no orçamento público, com quitação até o final do exercício seguinte.
Na prática, porém, os caloteiros oficiais não cumprem a disposição constitucional. Sabem que o lentíssimo andamento dos processos no Judiciário vai dar-lhes, ainda, bom descanso, o que os leva a fazerem novas dívidas, na esperança de agravar o "abacaxi" que vier a ser passado aos seus sucessores.
Aconteceu, contudo, que o artigo 33 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) facilitou a vida dos caloteiros, ao permitir a quitação dos precatórios judiciais pendentes de pagamento no dia 5 de outubro de 1988 (data da Constituição) em oito prestações anuais, iguais e sucessivas, a partir de 1º de julho de 1989.
A chave do escândalo atual está no parágrafo único do mesmo artigo 33, pois autorizou a União, os Estados e os municípios a emitirem títulos da dívida pública, em cada ano, no exato montante do dispêndio necessário para pagarem cada uma das oito prestações. Só poderiam ser incluídas dívidas constantes de precatórios pendentes, ano a ano, no exato montante da despesa, listada pelos respectivos tribunais, do Estado, da região ou do Distrito Federal.
Mas o que fizeram os chefes de Poder Executivo hoje denunciados à opinião pública? Em 1996, com necessidades de caixa aumentadas pela conquista do voto, nos Estados e municípios (e alguns deles em situação de grave insolvência), pediram autorização ao Senado para emitir títulos públicos, sob alegação de pagamento dos precatórios, mas em valor muitas vezes superior à verba indicada pelos tribunais.
Esta Folha noticiou, com base em dados fornecidos pelo Tribunal de Contas do Município desta capital, que o ex-prefeito Paulo Salim Maluf pediu emissão de R$ 1,3 bilhão, dizendo que se destinavam a pagar precatórios, mas desviou 56,89% desse montante para outras finalidades.
O uso irregular das verbas assim levantadas ultrapassou, segundo a mesma fonte, os R$ 750 milhões. No Senado, não houve maior preocupação em verificar se os números eram verdadeiros e se estavam de acordo com os montantes requisitados pelos tribunais correspondentes. No Banco Central, viu-se o mesmo comportamento.
Quem é o responsável? Em relação aos Estados, considerando-se que os governadores estão no poder há mais de dois anos, são eles os que devem responder pelas irregularidades, se estas forem comprovadas. Poderão ser julgados por crime de responsabilidade (autorizador do seu impeachment) ou por crime comum, se a prova que vier a ser produzida evidenciar a conduta delituosa.
A situação dos municípios é diferente, pois os atuais chefes dos Executivos municipais foram empossados em 1º de janeiro deste ano. Se houver responsabilidade a apurar, será principalmente dos ex-prefeitos. Foram eles que submeteram o pedido de emissão dos títulos públicos ao Senado, em valor que a CPI tem apontado como incompatível com o indicado pelos tribunais. Foram eles que mandaram aplicar esse dinheiro em finalidades estranhas aos precatórios, no exercício das funções próprias da chefia do Executivo.
Claro que, se os deságios foram excessivos, em prejuízo dos cofres públicos, conforme a prova que vier a ser levantada, também poderão tipificar outras ações criminais. Contudo o pedido de autorização senatorial, em excesso sobre o montante das dívidas judiciais, e a aplicação irregular das verbas assim obtidas, para fins estranhos às mencionadas dívidas, comporiam os chamados crimes de mera conduta, nos quais a irregularidade da ação do agente se caracteriza com a prática do próprio ato, tomado em si mesmo.
Retomando o exemplo de São Paulo, se houver responsabilidade criminal a ser apurada quanto às condutas que venho de mencionar, depois de prova exaustiva, será do ex-prefeito Paulo Maluf. Se auxiliares seus surgirem como co-autores de tais condutas, também serão, em tese, puníveis, pois esse é o destino de quem, de qualquer modo, concorre para o delito, incidindo nas penas a este cominadas, na medida de sua responsabilidade. Nos Estados, a doutrina criminal aponta no mesmo sentido: se houver crime comum nas condutas referidas, o primeiro responsável é o respectivo governador.
Mas não esqueçamos do principal: sejam quais forem as consequências políticas, o direito de defesa deverá ser integralmente assegurado aos acusados, por mais fortes que sejam os efeitos do clamor público.

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