São Paulo, quinta-feira, 3 de abril de 1997
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A economia da morte

MARIA ANGELA D'INCAO

As novas tecnologias, entre outras coisas, colocam no mercado uma infinidade de novos produtos, entre eles os órgãos e as partes do ser humano, tecidos de diferentes conformações.
As questões que os novos tempos colocam para a vida humana vêm sempre acompanhadas de discussões de natureza ética e de informações à coletividade, como é o caso da possibilidade da clonagem de seres humanos.
Tanto a Lei de Transplantes como o decreto deverão levar um bom número de cidadãos em busca de novos documentos, tanto porque as doações nos termos da lei não são, de fato, voluntárias. Somos constrangidos, se não quisermos ser doadores presumíveis, a nos decidir rapidamente.
Nossa definição cultural de morte, como em muitos outros países, refere-se à parada do coração e não à morte cerebral -esta, uma definição médica discutível até entre os especialistas, dadas as suas diferentes compreensões da vida, do universo, da morte.
Um dos argumentos em favor da Lei de Transplantes é baseado na crença de que ela acabaria com o tráfico, a comercialização e a apropriação ilícita de órgãos e tecidos. Será mesmo que teremos uma moralização nesse sentido?
Vejamos: os órgãos e tecidos de qualquer pessoa saudável (exceto as juridicamente incapazes, não-identificadas, com mais de 65 anos e aquelas que tiverem documentos de não-doador) podem ser retirados e doados, nos estabelecimentos públicos ou privados e por equipes médico-cirúrgicas previamente autorizadas pelo Sistema Único de Saúde.
Em um momento político no qual o Estado está à procura de se livrar de incumbências onerosas, privatizando-as, podemos esperar capacidade para dominar a extensão da problemática? O SUS, sem condições para trabalho de rotina, ganha mais uma extensa responsabilidade.
O espetáculo de Heliópolis não nos permite pensar que estejamos diante de uma sociedade onde a ética profissional seja prática comum entre nós.
Ao contrário, o tráfico e o comércio de órgãos e tecidos, agora, correrão soltos em nome da vida e dos bons propósitos humanitários que toda as sociedades, mesmo as sem pacto social confiável, romanticamente, em alguma instância de seu "id", ainda têm.
Podemos esperar o ágio, a rede de influência, os lobbies e a compreensão, por parte da população, daquilo que é, afinal, o comércio e a economia da morte.
Como fazer? Em sociedades de difícil controle de éticas profissionais, de alto índice de desinformação da população e da presença de distintos preconceitos, seria mais sensato deixar aos cidadãos ou a seus familiares essa decisão.
Amplas discussões públicas sobre o significado da doação poderiam ajudar a aumentar a esperança de vida de pessoas que se encontram à espera dela.
Seria, talvez, o único ato generoso que muitos brasileiros poderiam ter, dadas as condições hostis de sua vida.
Isso certamente contribuiria para o fortalecimento da sociedade, na direção da confiabilidade e da solidariedade.
De qualquer modo, quanto são os que necessitam de doações? Trata-se de um número que obrigue a urgência de uma medida legislativa de massa?
Lembrando o número de pessoas que morrem anualmente neste país de acidentes e assassinatos, não se pode deixar de perguntar: o que se vai fazer com tanto material humano?
É preciso não só definir as competências e responsabilidades, mas, sobretudo, saber quem está lucrando e irá continuar lucrando com os órgãos e partes humanas. Não podemos, irresponsavelmente, supor que uma lei seja garantia de decência, quando estamos falando do Brasil.

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