São Paulo, domingo, 6 de abril de 1997
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O "neobobismo" dos jesuítas

ROBERTO CAMPOS

"Os mercados abertos fazem mais pela liberação dos pobres que qualquer outra alternativa. Mercados abertos favorecem a criatividade e o dinamismo. Eles também estreitam a distância percebida entre a ação pessoal e o destino pessoal. E estreitar essa brecha é fortalecer a dignidade humana."
Michael Novak, em "The Spirit of Democratic Capitalism"

"Fúria contra o desconhecido" ou "Assalto ao inexistente" são boas descrições de um estranho documento que me veio às mãos: "O Neoliberalismo na América Latina". Trata-se de uma tomada de posição dos Provinciais da Ordem dos Jesuítas sobre problemas da globalização e liberalismo.
Os ilustres jesuítas denunciam corretamente a desigualdade, a miséria e a corrupção na América Latina. E, incorretamente, atribuem ao liberalismo senão a causação, pelo menos a gravação dessas moléstias. Há um vício de origem nesse raciocínio. Houve uma tímida guinada liberalizante, sobretudo após o colapso do socialismo, mas o paradigma liberal está longe de ser dominante na América Latina. Quando sociólogos e economistas buscam classificar nossas estruturas, os apelidos usados são: mercantilismo, patrimonialismo, estatismo, pré-capitalismo, proto-socialismo e dirigismo burocrático. A acusação menos cabível é precisamente a de "liberalismo". Assim, a advertência contra os perigos do neoliberalismo soa como um chute no vácuo.
Nada mais fácil do que lamentar as desigualdades. Nada mais difícil do que admitir que Deus não é socialista. Ao dotar suas criaturas de inteligência e diligência díspares -na mesma família podem nascer um Beethoven e um Al Capone-, o Criador fez da desigualdade parte inescapável da herança humana. O que nos resta é a administração humana das desigualdades. Em certo sentido, os distributivistas que, desejando substituir o mercado pela noção de "Justiça Social", privam alguns do fruto de suas faculdades em benefício de outros, segundo critérios "politicamente corretos", são apenas macacos de Deus. A vantagem do mercado é precisamente liberar as pessoas para o máximo exercício de sua criatividade; oferece acesso, porém não garante sucesso. Existe infelizmente um preconceito católico contra a riqueza: rico é quem "tira" algo de alguém. Mas Bill Gates, o homem mais rico do mundo, não tirou nada de ninguém. Usou sua criatividade para massificar o uso de um novo produto: o software. Há outros preconceitos subjacentes ao etos católico, de que me embebi como seminarista, filósofo e teólogo. O lucro é visto como uma secreção do egoísmo capitalista, e não uma sinalização de sucesso na satisfação do consumidor. O mercado não é um artefato cruel e sim uma das grandes instituições espontâneas da sociedade, como a linguagem, a religião e a família. É um indispensável sistema de sinais para orientar o produtor a produzir, o investidor a investir e o consumidor a escolher.
Os provinciais fariam bem em se informar do grau de liberdade econômica na América Latina antes de discorrer sobre os perigos do neoliberalismo. Um bom começo é o livro dos professores Gwartney, Lawson e Block -"Economic Freedom of the World" (1975-1995)- publicado por 11 institutos de pesquisa. É uma análise de mais de cem países, segundo 17 componentes diferentes relacionados com: 1º) moeda e inflação; 2º) operação e regulamentação governamental; 3º) tributação e 4º) intercâmbio externo. Entre os 20 países de maior liberdade econômica não figura nenhum latino-americano (exceto Costa Rica, em 16º lugar). Argentina e Chile estão empatados no 26º lugar. O México está no 45º, enquanto que o Brasil, supostamente ameaçado pelo neoliberalismo, está no 97º lugar! Isso é compreensível, aliás, pois ainda mantemos os dinossauros estatais de petróleo e telecomunicações, e o governo representa mais de 40% do PIB. É interessante notar que no período analisado (1975-1995) houve estreita correlação positiva entre liberdade econômica e melhoria de vida. Os seis países com maior liberdade econômica -Hong Kong, Suíça, Cingapura, Estados Unidos, Canadá e Alemanha- gozam todos de elevada renda real por habitante, o contrário acontecendo com os países intervencionistas que estagnaram ou retrocederam. O sucesso de Hong Kong e Cingapura indica que a liberdade criativa no mercado é fator mais importante que o território ou os recursos naturais. Receia-se que o liberalismo econômico, ao priorizar a eficiência, aumente o desemprego. Mas no grupo dos superliberais figuram alguns dos mais eficientes geradores de emprego -como Hong Kong e os Estados Unidos. Não há um fluxo de emigrantes escapando do liberalismo e sim, ao contrário, um fluxo de imigrantes fugindo de várias formas de socialismo dirigismo...
Além da contribuição do sobrenatural para as desigualdades, existe a contribuição perniciosa de um "Deus ex-Machina" -o Estado. Na raiz de nossas absurdas disparidades de renda estão dois fatores: a inflação e a falta de educação básica. O responsável por ambas as coisas é o Estado e não o mercado. Estranhamente, persiste a idéia de que o Estado é uma abstração benévola capaz de corrigir o mercado. Ora, o Estado é o governo, não passando de um aglomerado de burocratas e políticos, que almoçam poder, promoção e privilégios. Somente na sobremesa pensam no "bem comum". Por isso é que o Estado ótimo é o "Estado mínimo". Deve cuidar de funções indelegáveis, como segurança, justiça, educação de massa e saúde (sobretudo preventiva). Deve partilhar responsabilidades pela infra-estrutura e ser forte em duas tarefas específicas: estabilizar a moeda e preservar a concorrência. Isso pouco tem a ver com o Estado brasileiro, que cria monopólios ao invés de combatê-los.
Qual a solução dos jesuítas para essa ameaça inexistente -o neoliberalismo? É o "controle social do mercado" em nome de um indefinido "bem comum". Essa é também a receita de FHC, que tem ataques de urticária quando acusado de "neoliberal". Eu prefiro uma receita diferente, que vem dos antípodas. Deng Xiaoping, partindo de um "mercado socialmente controlado", resolveu afrouxar tais controles e recomendar aos chineses: "Enriquecei-vos. Enriquecer é glorioso". Com isso provocou uma explosão de crescimento. Estima-se que na era Deng 300 milhões de chineses, o dobro da população brasileira, tenham escapado da linha de miséria. Quantos pobres terão no Brasil escapado da miséria em função da caridade eclesiástica? O balanço é provavelmente negativo, pois a oposição clerical ao planejamento familiar resultou numa fabricação de pobres em ritmo superior à capacidade da economia para dar-lhes educação e emprego.
FHC prestou grande serviço ao país ao denunciar a proliferação de dois vírus -a "neoburrice" e o "neobobismo". O pior é que são contagiosos. O "neobobismo" da Carta dos Jesuítas acabou contaminando a CNBB. Os bons bispos se levantam contra a privatização da Vale do Rio Doce, como se o dinossauro estatal fosse capaz de curar a pobreza. Não contentes com sua tarefa de pastoreio das almas querem ser guardiões de cadáveres geológicos. Na era dos "chips" e da "sociedade do conhecimento", produzir ferro, papel e ouro é tarefa de pequeno burguês. Os dividendos historicamente recebidos pelo Tesouro não excedem 2% anuais, enquanto a dívida pública tem que ser rolada a um custo oito vezes mais alto. Pareceria minimamente sensato vender esses ativos, economizando juros e amortização que poderiam ser aplicados em investimentos de clara prioridade social.
O problema com o catolicismo brasileiro é que entende de menos o mercado e reverencia demais o Estado. Seu desamor aos ricos excede seu amor aos pobres. Gosta de distribuir riquezas, mas não se esforça por facilitar a criação de riquezas.

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