São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Corporativismo ou pluralismo?

ANGELA DE CASTRO GOMES

O livro de Maria Hermínia -uma das primeiras analistas do "novo sindicalismo"- é um fato a ser festejado, pois se trata de autora cuja produção intelectual esteve praticamente concentrada em artigos dispersos.
Vale a pena rememorar que sua tese de doutorado, "Estado e Classes Trabalhadoras no Brasil: 1930-1945" (USP, 1978), nunca foi publicada, embora constituísse referência necessária para todos os que enfrentaram o tema nos anos 80. Nesta década, aliás, Maria Hermínia empreende seu trabalho de articulista. São muitos os seus artigos, presentes em revistas acadêmicas e em coletâneas, todos voltados para o acompanhamento dos rumos do sindicalismo brasileiro reestruturado no bojo da experiência autoritária do pós-1964. Como cientista político, ela se destaca não só pela rapidez com que apresenta análises sobre complexos fenômenos em curso, como pela originalidade e ousadia de algumas de suas explicações.
Vejo este livro como uma espécie de síntese de um longo percurso, consolidando interpretações veiculadas em outras oportunidades, mas acrescentando a elas um novo poder, justamente pelo esforço de unificação que a redação de um trabalho de maior fôlego sempre exige.
O livro, como esclarece a autora na "Apresentação", trata do movimento sindical dos anos 80, contemplando dois temas dramáticos e emblemáticos: as respostas sindicais às políticas econômicas de estabilização de preços -o que envolve as questões clássicas da demanda por aumentos salariais e melhor distribuição de renda- e as iniciativas sindicais visando à reforma da estrutura corporativista de representação de interesses, montada desde as anos 1930-40.
A primeira parte começa com uma reflexão sobre as causas que levaram o movimento sindical a escolher a estratégia do confronto com o Estado, inovando ao demandar seu afastamento das negociações com o empresariado, sob a bandeira da livre negociação e da autonomia sindical. O regime autoritário vigente, com sua política de arrocho salarial, repudiada pela oposição política geral e também pela sociedade mais ampla, é o pano de fundo a dar sustentáculo a tal opção.
A seguir, realiza-se um minucioso acompanhamento cronológico das tentativas governamentais de implementar políticas que controlassem a inflação, considerando-se as reações desencadeadas nas lideranças sindicais dos trabalhadores e empresários, de setores políticos (em especial da oposição) e também da burocracia estatal. O ponto fundamental é assinalar por que é mantida a escolha inicial pelo confronto, a despeito da conjuntura demarcada pela Nova República e dos sucessivos malogros colhidos numa luta por aumento salarial, que acabava por alimentar uma "coalizão inflacionária de fato", composta por trabalho organizado e empresas. A lógica perversa deste curso de ação foi, contudo, contrabalançada por ganhos de natureza expressiva ou identitária, como prefere Maria Hermínia -isto é, não redutíveis a cálculos de natureza utilitária. Vale dizer, o movimento sindical cresceu e afirmou-se entre os trabalhadores em geral, ganhando grande reconhecimento político e social. Como uma faca de dois gumes, o confronto tornava o sindicalismo dos anos 80 poderoso ator social, mas assinalava seu aprisionamento político e fracasso quanto a ganhos de teor material.
A segunda parte destina-se a compreender como a intenção primeira dos "novos sindicalistas", de rejeitar e alterar a estrutura sindical, foi sendo abandonada de forma gradual, mas segura, muito embora ambígua e tensa. A opção pelo confronto associava-se à opção pelo sindicato oficial, dentro do qual as novas lideranças haviam nascido, e que inegavelmente facilitava as estratégias de aumento de seu próprio poder de competição, além de propiciar as negociações com o empresariado e as reações às políticas governamentais.
Nesse caso, é bom destacar o peso que a autora atribui à estrutura corporativista, marcada pela descentralização, e assentada no sindicato de base municipal. É ela um dos principais obstáculos à projeção de ações menos imediatistas e mais abrangentes e, assim, menos radicais. Associada à intransigência empresarial e à crise econômica da década, ela explica muito deste acidentado percurso sindical. Ancorados na "naturalização" do monopólio da representação, que trazia a reboque a unicidade e o imposto sindicais, os novos dirigentes não serão os formuladores da mais significativa proposta de mudança realizada no período. Como ironia perversa, será um ministro do Trabalho, Almir Pazzianotto, quem a encaminhará, já em 1987, sob o silêncio de empresários e lideranças sindicais. Como se vê, e o registro é feito desde o início, nenhum dos dois objetivos foi atingido, sendo a leitura do livro uma busca das razões que expliquem este desfecho de insucessos, particularmente intrigante, porque o nascimento do novo sindicalismo se dera em clima de boas expectativas quanto à sua força de resistência e transformação.
Situo este livro como um texto a meio caminho entre a ciência e a história política. Aliás, a própria autora anota que sua explicação não possui "a elegância dos modelos de análise causal que estabelecem relações precisas entre variáveis", preferindo uma abordagem que encara a ação sindical como "estratégia", isto é, como escolha entre alternativas possíveis. Para mim, esta é a grande virtude do texto, que recusa a esquematização da análise de processos sociais, preferindo correr riscos, mas ganhar em vida, ao apostar em fatores explicativos centrados nas relações entre movimento sindical, governo e empresariado.
Ora, justamente por isso, creio poder lamentar algumas ausências que acentuariam a riqueza das explicações construídas. Em primeiro lugar, ao trabalhar com o movimento sindical, a autora enfatiza que seu foco incidiu sobre as lideranças, deixando de lado as relações entre elas e as bases, até mesmo porque a autonomia dos dirigentes sindicais foi e costuma ser sempre muito grande. Nada a objetar. Contudo, quando se desconsideram as relações internas e altamente competitivas entre as lideranças sindicais como um fator-chave para a compreensão do curso de ação do movimento sindical, o resultado não me parece tão bom. De um lado, porque ela mesma reconhece que tal competitividade foi variável crucial para as escolhas realizadas em diversas circunstâncias. De outro, porque sua análise não consegue extirpar de seu interior tal competitividade, que emerge com destaque razoável quando a questão é a da transformação da estrutura corporativista do sindicalismo existente. Neste caso, um exame, ainda que rápido, dos principais embates travados entre as diferentes lideranças muito esclareceria o leitor.
Uma segunda ausência é a de uma interlocução com toda uma literatura produzida sobre o tema do sindicalismo no campo da antropologia e da história. Entre elas, e apenas como exemplo, está o desenho de um sindicalismo anterior ao "novo", marcado pela falta de penetração nos locais de trabalho e pelo baixo apelo mobilizador. Vários estudos disponíveis têm demonstrado que, no caso de diversas categorias profissionais, tais assertivas não se sustentam, havendo linhas de comunicação, entre o "novo" e o "velho" sindicalismo, que transcendem tal esquematização. Nesse sentido, as dicotomias mais profundas também fariam parte de uma estratégia identitária, como apontou Maria Hermínia. Isto é, seriam parte de uma busca por distinção, que fundaria o reconhecimento da "nova" classe trabalhadora em seu "novo" sindicalismo.
Recomeçar é assim a palavra de ordem que preside o esforço interpretativo da autora. Ele se inicia com o nascimento do sindicalismo "autêntico" e conclui deixando em aberto os rumos do atual sindicalismo, que estaria entre o corporativismo, ainda não abandonado, e o pluralismo, uma possibilidade. Talvez, se bem entendi, uma esperança.

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