São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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O dever de blasfemar

RONALDO VAINFAS

RONALD VAINFAS
A epígrafe deste livro é uma frase atribuída a Domenico Scandela, o Menocchio de Carlo Ginzburg: "Cada um faz o seu dever, tem quem ara, quem cava e eu faço o meu, blasfemar". É frase bem escolhida, que bem poderia ser dita pelo Pedro de Rattes Henequim, o herói de Plínio que, como Mennochio, caiu nas garras da Inquisição, no caso a portuguesa do século 18. Henequim, como Mennochio, era homem de desacatar inquisidores, de exigir papel e pena para expor suas idéias, que sabia complexas, de considerar incompetentes os juízes do Santo Ofício e deles exigir que o enviassem ao papa para ouvi-lo dissertar ou, quem sabe, blasfemar.
O fato é que Pedro de Rattes Henequim estava mesmo a merecer um estudo específico. Nascido em Lisboa, em 1680, era filho ilegítimo de um romance entre a portuguesa Maria da Silva e Castro e o cônsul holandês Francisco Henequim. Educado pelo dominicano frei Rodolfo, acabaria frequentando o Colégio Jesuíta de Santo Antão, três anos de filosofia, dois de teologia, até que aos 20 anos optou por tentar a vida no Brasil, em Minas Gerais, onde permaneceu por cerca de 20 anos. Travou contatos com cristãos novos, de que as Minas estavam repletas, com negros e índios. Atuou como minerador, não muito afortunado, é verdade, e sempre ambicionou tornar-se padre. Tentou ordenar-se, já de volta a Lisboa, mas também nisso viu naufragar seu projeto. Apaixonou-se por uma menina de 14 anos, sua vizinha, de nome Joana, tendo ele quase 44. Prometeu casamento e não cumpriu, razão para o meterem no cárcere do Limoeiro. Acabaria casando com Joana, mas, quatro meses depois, a deixaria para sempre com filha de colo.
Até aqui nada de mais notável na vida de Henequim, cujas peripécias se perderiam no tempo, não fosse ele preso, em 1741, por ordens de D. João 5º, suspeito de conspirar contra o rei, e depois enviado ao Santo Ofício, agora suspeito de heresia, de onde sairia condenado à fogueira em sentença executada em 1744. Henequim foi, com efeito, indivíduo peculiar, em muitos pontos comparável ao Menocchio de Ginzburg, o que só nos é possível constatar por causa de sua desdita no mundo dos inquisidores. Causa perplexidade, de qualquer modo, o fato de só agora ele merecer um estudo específico. Ernesto Ennes dedicou-lhe um artigo, em 1940, preocupado então com o Henequim supostamente conspirador, e Sérgio Buarque algumas linhas no prefácio à segunda edição de "Visão do Paraíso", prefácio escrito em 1968, preocupado com as idéias edênicas que Henequim cultivou.
Plínio Gomes, primeiro historiador a destrinchar o volumoso processo inquisitorial de Henequim, processo de quase mil fólios, dedicou-se a reconstruir o Henequim herege, seguindo o rastro dos inquisidores e as réplicas do réu, do que resultou um livro fascinante, seja pela qualidade da narrativa, seja pela acuidade das interpretações. O Henequim conspirador Plínio Gomes não analisa, sem contudo descartar a hipótese levantada por Ennes, segundo a qual Henequim conspirara, em Minas Gerais, para aclamar o infante D. Manuel, irmão de D. João 5º, rei do Brasil, conspiração de resto malograda e sobre a qual as evidências são mínimas.
No longo processo inquisitorial movido contra o Henequim, registra-se apenas uma menção indireta à conspiração, feita aliás pelo próprio réu, que, tencionando desqualificar seus acusadores, afirmou que primeiro lhe atribuíram falsos documentos, para torná-lo culpado de lesa-majestade humana, e no Santo Ofício queriam culpabilizá-lo por lesa-majestade divina. É referência decerto modesta, vaga, e mesmo essa Henequim só mencionou para desmentir e livrar-se da Inquisição.
O Henequim herege, no entanto, transborda do seu longo processo, o que não é de surpreender, pois era de heresia, afinal, que tratava o Santo Ofício. Herege múltiplo, aos olhos da Inquisição, e também no entender do historiador que o estudou, agindo como o "inquisidor-antropólogo" de que fala Carlo Ginzburg, a espreitar por detrás dos juízes as confissões do acusado. Não, é claro, para justificar culpas e sentenças, mas para rastrear idéias, indícios de um complexo cultural de que um indivíduo pode ser portador ou enunciador. Plínio Gomes teve pleno êxito nesta delicada tarefa. Mostra-nos, em seu livro, um Henequim muito marcado pelo convívio com os cristãos novos de Minas, quiçá judaizantes, e nem tanto pelo fato de o personagem praticar às escondidas ritos judaicos, mas pelo conhecimento que parecia ter da cabala, saber inspirador de sua cosmologia heterodoxa. Mostra-nos também um Henequim que possivelmente lera Vieira ou conhecera de algum modo suas idéias acerca do Quinto Império, marca da salvação universal dos povos. Vieira projetara Portugal na cabeça do Quinto Império, herdeiro da larga tradição sebastianista do reino; Henequim o projetara no Brasil e também ali, particularmente em Minas, viu o Paraíso Terreal, horizonte onírico do Ocidente cristão havia séculos.
Plínio Gomes nos mostra ainda, audaciosamente, um Henequim "logoteta", inventor de palavras, fundador de línguas, decifrando sua cosmologia algo cabalística, ao menos no "demonstratio", segundo a qual "longe de existir sempre, a própria Natureza Divina teria sido engendrada de bocados de céu só no instante inaugural do mundo". "Deus não podia criar a Deus!" lhe diziam os inquisidores. Henequim respondia: "Deus só passou a se chamar Deus quando vivificou a imagem do Pai", sendo por isso Criador e criatura. "Deus era trino em pessoa, insistiam os inquisidores, mas uno e eterno em essência!". Henequim retrucava: "Deus é letras".
Entre impérios, blasfêmias e letras, Henequim acabaria avançando nas suas "teorias", o que se fez, paradoxalmente, com o estímulo da Inquisição. "Fábrica de hereges", já houve quem se referisse deste modo ao Santo Tribunal, ao que se poderia acrescentar: fábrica de heresias. Mas a matéria-prima cultural de que se formavam as heresias na mesa e nos cárceres inquisitoriais circulava na sociedade, melhor dizendo, nas múltiplas sociedades de que se compunha o império português. No caso de Henequim, sua cosmologia resultaria, feitas as contas da cabala, num mundo literalmente às avessas: portugueses convertidos ao judaísmo; o Quinto Império no Brasil; o Paraíso nas Gerais. O Santo Ofício não poderia suportar tamanha obstinação heretical e, fundamentalmente por isso, mostra-nos o autor, condenou Henequim à morte. O Paraíso não foi assim, de nenhum modo, o ponto de chegada da viagem de Henequim, malgrado o título deste belo livro.
Iniciamos a resenha comparando Menocchio e Henequim e, com todo o rigor, não é comparação ociosa nem leviana. Menocchio e Henequim elaboraram cosmologias cruzando a cultura escrita e a tradição oral recolhida em suas vivências. Ambos desafiaram os inquisidores como juízes, insistindo em suas idéias heterodoxas, desdenhando das penas seculares com que se lhes ameaçavam. Pagaram com a vida por sua pertinácia no que a Inquisição considerava "erro de fé": heresia, escolha. Carlo Ginzburg nos revelou o Menocchio e, por meio dele, propôs um renovado instrumental teórico para a história cultural. Plínio Gomes lhe seguiu os passos e o método, revelando-nos o Henequim do "Deus criatura", da "Virgem varonil", do "sexo dos anjos". "Um Herege Vai ao Paraíso" é, por tudo isso, livro para se saudar como contribuição historiográfica de talento e ousadia intelectual. E, a bem da verdade: Henequim não merecia nem esperaria menos do seu historiador.

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