São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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A máxima simplicidade

HENRIQUE FLEMING

Durante duas décadas, a física das partículas elementares, a vanguarda da pesquisa sobre a estrutura da matéria, seria dominada por Gell-Mann. Não só se aguardavam com ansiedade os resultados de seu último trabalho, mas se confiava nas opiniões que emitia sobre o caminho a ser seguido pela física no futuro. Essas opiniões eram emitidas até com certa abundância -o papel de oráculo era de seu agrado. Teve um grande sucesso, maior do que o previsto pelo professor Goldemberg. Introduziu na física das partículas elementares idéias extremamente originais, entre as quais talvez se deva dar realce à descoberta do papel da teoria dos grupos na raiz mesma da estrutura da matéria (o que teria feito as delícias de Platão) e que conduziu, quase inexoravelmente, à descoberta dos "quarks", os mais curiosos membros da família dos constituintes fundamentais da matéria.
O nome, "quark", também devemos a ele, e foi uma de suas tantas demonstrações de erudição: tirou-o de James Joyce, creio que de "Finnegans Wake", onde se encontra a frase "Three quarks for muster Mark". Como os quarks eram três, a citação é apropriada. Outro aspecto de sua erudição é o interesse por línguas estranhas (para nós). Assim, referiam os íntimos, estudava sânscrito e, depois, quéchua e muitas outras línguas. Reflexos dessa paixão serão notados, pelo leitor avisado, em quase qualquer página do livro e constituem um dos seus atrativos. Tendo lido o livro, primeiro, em inglês, imaginei que essas peripécias linguísticas, os constantes apelos ao étimo das palavras e, sobretudo, a precisão do vocábulo inglês, o sucesso na busca da "palavra justa", tornariam sua tradução um pesadelo. E eis que tenho diante de mim uma tradução estupenda! Desvelos e pesquisas do tradutor decantaram num esplêndido, fluido português de mestre do ofício.
Gell-Mann, enfim, é um monumento. O anúncio de um livro de sua autoria, "O Quark e o Jaguar", não podia deixar de despertar grande interesse entre os físicos e agregados. Mas é claro que Gell-Mann ambicionava audiência e emolumentos maiores: disso se encarregaram o título do livro, a propaganda, e um grande esforço para atingir os não-iniciados.
O título, como convém, é a extrema síntese do livro: o "quark", a unidade, a máxima simplicidade; o jaguar, um magnífico sistema macroscópico, complexo, capaz de aprender e adaptar-se às circunstâncias, um sistema complexo adaptativo, que é o conceito central em torno do qual se desenvolve a obra. E, contudo, este magnífico sistema complexo adaptativo é feito de "quarks". Como entender esta conexão entre o simples e o complexo, entre as várias escalas de leis, umas dedicadas ao simples, outras dedicadas ao complexo, tão diferentes e, ao mesmo tempo, estreitamente ligadas, umas, em algum sentido, deduzidas das outras? Esta a tarefa principal do livro.
É ela exequível? As leis fundamentais dos sistemas simples, dos tijolos do universo, são leis da física. Qual é a essência do método da física? Esquecendo os manuais, que descrevem métodos que ninguém usa, examinemos como um físico se organiza para atacar um problema novo. Há uma frase famosa do físico americano I.I. Rabi que revela quase tudo. Dizia ele: "Primeiro, há que procurar o átomo de hidrogênio da questão".
Com isso ele queria dizer o seguinte: quando se procurava entender a física dos átomos, grandes progressos, os maiores progressos, na busca de leis "gerais" foram obtidos estudando-se o mais simples dos átomos, o átomo de hidrogênio. E este é o método a seguir sempre, na procura das leis microscópicas: isolar o sistema mais despojado da área em questão, o seu "átomo de hidrogênio", reduzindo o sistema a ser estudado, talvez por subdivisão, a partes cada vez mais simples, até atingir a mais simples. Assim foi descoberta, por exemplo, a mecânica quântica, a teoria básica da física de nossos dias, e este foi o caminho seguido na obtenção da maioria dos grandes triunfos da física. Ora, no estudo dos sistemas complexos este método é contra-indicado: ao subdividir o sistema, mata-se a complexidade! Será, então, um físico, um "reducionista" emérito, o pesquisador indicado para estudar a complexidade? Esta era a minha dúvida ao empreender o estudo do livro. Adianto ao leitor que agora, meses depois, minha dúvida permanece.
O livro é dividido em quatro partes, denominadas "O Simples e o Complexo", "O Universo Quântico", "Seleção e Aptidão" e "Diversidade e Sustentabilidade".
A primeira é magistral. Trata de definir o conceito de complexidade, o que é feito com um estilo agradável, combinando narrativas anedóticas com algumas incursões por problemas bem difíceis. Passa-se pela complexidade de Kolmogorov, introduzindo-se uma medida do conteúdo de informação algorítmica, que serve para se chegar ao verdadeiro conceito procurado, que é o de complexidade efetiva. Apesar de superficialmente semelhantes, essas duas medidas da complexidade possuem uma diferença fundamental: para a complexidade efetiva, o aleatório (ou seja, criado ao acaso) não é complexo. Gell-Mann procura compensar a limitação de meios (quase nenhuma matemática) pela apresentação de exemplos: a aprendizagem de uma língua por crianças, ou, equivalentemente, a construção de gramáticas por sistemas complexos adaptativos, o desenvolvimento da resistência a fármacos por bactérias (outros sistemas complexos adaptativos, sim senhor), a própria pesquisa científica, em que as "gramáticas" produzidas são as teorias. Talvez se possa dizer que o conceito unificador aqui introduzido seja o de "compressão", no sentido usado na informática: a teoria é uma expressão de um conjunto de fenômenos obtida após alto grau de compressão. Esta é a melhor parte do livro. Termina na pág. 136 e, em minha opinião, daria já um excelente livro sobre o tema, talvez com mais um capítulo de exemplos. Muito se aprendeu, especialmente uma maneira nova de observar nossa interação com a natureza. Mais: como somos sistemas complexos adaptativos, uma iluminante racionalização de nossa maneira de agir diante de situações novas.
Em uma centena de páginas, a seguir, o autor descreve a física moderna. Com grande autoridade, por certo, mas é difícil evitar a sensação de encontrar idéias fora do lugar. Neste ponto o leitor seria mais bem-servido por uma oportunidade de exercitar o conceito de complexidade, a fim de atacar os problemas das partes finais da obra. Fora isso, não há do que se queixar: o leitor estará aprendendo diretamente da fonte. Resta verificar o quanto do material apresentado pode ser assimilado sem o poder de compressão (no sentido descrito acima) do formalismo matemático.
As partes três e quatro exigem muito menos esforço, já que são esboços de trabalhos em andamento, principalmente no Instituto Santa Fé, uma instituição criada por Gell-Mann para estudos da complexidade. O capítulo 20 contém descrições inteligentemente sucintas de coisas muito importantes, como o estudo e aplicações das redes neurais e vários tipos de simulações de sistemas complexos em computadores.
Na imagem deste livro, que permaneceu após o uso de meus próprios métodos de compressão, há três partes distintas: na primeira parte, que coincide com a primeira parte do autor, há o verdadeiro progresso conceitual. A segunda parte, que é, também, grosso modo, a segunda parte do livro, contém uma aula sobre os "quarks", ou seja, sobre os sistemas simples. A terceira parte é um catálogo de maravilhas, um grande elenco de problemas e esboços de soluções. O que há de mais interessante nessa parte é que, frequentemente, o problema descrito nem sequer teria sido considerado, pelo leitor comum, como um problema cientificamente tratável. Considere, por exemplo, o tema "Pressões Exercidas por Indivíduos Influentes", na pág. 308, ou "A Importância dos Trópicos", na pág. 141.
Um defeito grave é a ausência de bibliografia. Quanto vale uma bibliografia de autoria de Gell-Mann sobre os temas de sua eleição? Quando eu era um menino de Florianópolis, procurando obter como podia uma educação científica, aprendi que tesouro é, para quem não tem uma biblioteca em que possa folhear livros, uma boa bibliografia comentada. Uma oportunidade perdida, num livro, de qualquer forma, precioso.
"O Quark e o Jaguar" não se destina a ocupar um fim-de-semana; requer uma leitura lenta, entremeada de muita reflexão e de tentativas de achar, o leitor, seus próprios exemplos de aplicação das leis aprendidas. Não que seja uma leitura difícil: o trabalho árduo do mestre obteve sucesso. É que trata de coisas novas e, frequentemente, de novas maneiras de ver coisas velhas. E leva um certo tempo adquirir hábitos novos de pensamento.

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