São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Descendentes de Victor Hugo criticam desenho

MADAME JEAN HUGO
ESPECIAL PARA O "LIBÉRATION"

Muitos jornalistas e outras pessoas reagiram com espanto à nossa intervenção, pois, legalmente, os direitos autorais de Victor Hugo já "reverteram ao domínio público". Concluíram, apressadamente, que temos inveja desse dinheiro todo que está sendo ganho às custas dele e que esperamos recuperar uma parte com nosso gesto.
As obras de Victor Hugo pertencem ao domínio público; isso significa que nem sua família, nem ninguém mais pode receber direitos autorais por ela. Mas isso não nos impede de observar que o espírito dessa lei está sendo em grande medida deturpado por Walt Disney e pelas empresas filiadas a essa campanha comercial, já que elas obtêm lucros enormes sobre direitos e vendas de produtos que atribuem a si próprias, quando exploram a idéia de Victor Hugo.
A família não recebe mais direitos autorais, e por isso mesmo, nós não estamos dispostos a aceitar qualquer espécie de pagamento por "danos", qualquer parte dessa espécie de dinheiro originário de procedimentos que rejeitamos.
Que fique bem claro, portanto, que não se trata de uma questão financeira. Nosso gesto parte justamente de uma preocupação totalmente oposta ao dinheiro: a questão da cultura.
Nossa reação de ira é baseada em duas razões essenciais. A primeira é que as "produções Walt Disney" retiraram o nome de Victor Hugo de todas as peças promocionais de seu filme e das vendas de todas as mercadorias associadas a este.
Não se encontra o nome de Victor Hugo no cartaz do filme, nem nos livrinhos que contam a história do filme. Assim, encontra-se documentos distribuídos aos professores, nas escolas, incentivando-os a levar os alunos à Disneylândia, para uma jornada temática sobre a Idade Média e a catedral de Notre-Dame de Paris, onde são propostos "suportes pedagógicos: Jules Verne, os 'Contos' de Charles Perrault, Grimm e Collodi".
Consideramos que o mínimo que podemos fazer é unir nossas vozes às daqueles que protestam contra essa escandalosa omissão.
Em resposta a esse protesto, certos setores evocam o direito de adaptação de uma obra artística. Sabe-se hoje que os desenhos de Walt Disney, como outros filmes de outras empresas, são qualificados pelas próprias pessoas que os concebem como "suporte visual de campanha comercial". Existe grande diferença entre o fato de adaptar-se uma obra para criar uma nova obra e adaptar-se uma obra para vender calcinhas com desenhos impressos.
Na verdade, será que, nesse caso, se pode falar de um desejo declarado de adaptação, quando a Disney apresenta um filme evitando o nome do criador da história original?
Nossa revolta não é inspirada pelo desenho animado em si, se bem que essa pretensa "adaptação" não seja imune às críticas.
Qualquer que possa ser seu êxito no plano da qualidade e no do virtuosismo dos efeitos especiais, não deixa de ser verdade que o roteiro modificou a obra original com o intuito de torná-la vendável, e desnaturou seu sentido em determinados pontos, traindo as intenções originais de Victor Hugo.
Por exemplo, um dos personagens principais do romance é o abominável Claude Frollo, arquidiácono de Notre-Dame; no desenho animado de Walt Disney, esse clérigo é transformado em juiz.
Outra resposta a nosso protesto sugere que Disney pode ajudar a divulgar a obra de Victor Hugo. Esse argumento não é plausível. As potências do dinheiro servem-se das grandes obras artísticas para escoar seus produtos, e não o contrário; não vendem seus produtos para promover a cultura.
Aliás, se o nome de Victor Hugo não é nem mesmo mencionado nos cartazes, e o que aparece em seu lugar na maioria dos documentos é o nome de um roteirista, já temos o direito de duvidar que Walt Disney tenha tido a preocupação de divulgar Victor Hugo.
Suas publicidades nos convidam unicamente a lembrar-nos do filme e comprar os produtos comerciais "derivados" dele. Eles não fizeram esse investimento todo para aumentar as vendas dos livros de Victor Hugo!
Uma de nós é professora e trabalha com crianças pequenas. São poucas as que sabem que Esmeralda e Quasímodo são personagens de Victor Hugo. A única coisa que tem boas chances de acontecer é que a criança que esbarra numa capa ilustrada de "O Corcunda de Notre-Dame" grite: "Olhe, mamãe, o corcunda de Walt Disney!"
A segunda razão que suscitou nossa ira concerne o tipo de cultura associada a essas campanhas comerciais e os filmes feitos para esse fim. Ela é ampliada para abranger todas as utilizações de grandes obras com fins comerciais. Nossa abordagem não é chauvinista, não se limita ao caso de Victor Hugo e da França, mas defende um princípio de cultura universal.
Ao lado de Victor Hugo, há a exploração de Vermeer para vender iogurtes ou a de Ravel para vender seguros, mas há outros casos.
Quem conhece a canção "Imagine", de John Lennon, e sua imagem idealista, pode imaginar o que ele teria pensado e feito se soubesse que sua canção seria usada para vender empréstimos bancários e taxas de juros financeiros...
As grandes obras artísticas merecem ser conhecidas por elas mesmas. A cultura deve ser organizada de modo que elas tenham existência própria, para que as pessoas possam encontrá-las sem precisar esperar por companhias de iogurtes, de desenhos animados ou de seguros. Será que é o comércio internacional que deve ocupar-se da cultura de um país?
Nossa desaprovação não confunde Walt Disney com o conjunto da cultura norte-americana. É claro que se você alimentar as crianças com comida McDonald's todos os dias, elas vão contentar-se com isso; cabe aos adultos lhes oferecer outros alimentos.
Dizem que "Walt Disney faz sonhar". Que tipo de sonhos? Sonhos pré-mastigados e adoçados, sonhos iguais para todas as crianças do planeta, sonhos que conduzem ao consumo de produtos.
Se você pedir às crianças em idade escolar que inventem e narrem uma história, a maioria delas vai reapresentar o último desenho animado japonês da televisão ou o último filme de Walt Disney. O objetivo desses sonhos povoados de figurinos plásticos não é enriquecer as crianças, mas as grandes empresas que as exploram.
Esses grandes foros comerciais que denunciamos não conduzem à cultura; pelo contrário, descartam a cultura, a substituem. Uniformizam a imaginação das pessoas e das crianças, as impedem de ler, de pensar e sonhar por conta própria.
Victor Hugo era um homem engajado com os acontecimentos de seu tempo, preocupado com os problemas de ética e de justiça, com os problemas sociais, filosóficos e políticos. Defendia os pobres e tinha grande respeito pelo povo.
Pensava, criava e lutava na esperança de elevar o espírito de seu tempo e de tentar melhorar o destino da humanidade. Era especialmente sensível às crianças, a sua educação e à proteção de sua liberdade de espírito. Consideramos que o tipo de cultura imposto por Walt Disney e seus semelhantes caminha no sentido exatamente contrário a essas convicções, que muitas pessoas de nossa época continuam a compartilhar.

Tradução de Clara Allain.

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