São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Prestes teve o ímpeto dos puros e ingênuos

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Não é mole falar bem ou mal de Luiz Carlos Prestes, justamente agora, quando se comemora o centenário de seu nascimento. Pertenço a uma geração que, em diferentes níveis, sentiu o fascínio de sua lendária figura embrenhada nos matos, lutando para realizar um sonho de justiça social que ele confusamente sentia mais em sua carne do que em sua cabeça.
Apesar de lhe atribuírem a fama de bom estrategista, apesar dos "nós húngaros" que empregou em suas andanças pelo interior do Brasil, lutando contra tropas regulares e até contra bandoleiros de Lampião, ele cometeu um erro essencial: um dia, parou para pensar -e pensou mal.
Prestes nunca teve chão intelectual. Fora bom aluno de matemática, digerira para o gasto os manuais militares. Faltava-lhe a condição de ideólogo, sobravam-lhe as virtudes e defeitos do político visceral, fisiológico, do homem-tripa -pessoalmente e em tese, aprecio muito esse tipo de homem.
Na Bolívia e mais tarde na Argentina, onde se exilara depois do malogro de sua famosa coluna, Prestes foi seduzido não pelo comunismo, mas pelo sovietismo -e a partir daí nasceriam todos os seus erros e pecados, em linhas gerais, erros e pecados (e até crimes) de todos os comunistas brasileiros.
Por essas e outras, os guris de minha geração habituaram-se a encontrar, na parede de privadas e mictórios da cidade, um "viva Prestes!" sempre acompanhado de numerosos "Morra Prestes!".
Não sei por que -nem a sociologia urbana explica esses mistérios- privadas e mictórios eram o veículo ideal para desabafos ideológicos.
E serviram pelo menos até os tempos de Carlos Lacerda, cujo nome substituiria o de Luiz Carlos Prestes em sítios tais, ora vivados, ora matados. A voz do povo funcionava como a voz de Deus, ao menos nas privadas.
Lembro-me de um amigo comum, o dr. Valério Konder, ex-senador, homem bom e nobre, de grande dignidade humana, com os olhos cheios de lágrimas ao lembrar a saída de Prestes da prisão: o heroísmo daquele comício em que Prestes apareceu ao lado de Getúlio Vargas, seu carcereiro durante anos, carrasco que autorizara a polícia a entregar sua mulher, Olga Prestes, aos nazistas que a assassinariam num campo de concentração da Alemanha.
Valério tremia, emocionado. E com sua voz, solenemente comovida, dizia que era preciso ser muito herói, muito homem para superar fossos assim pessoais numa jogada política.
Só um grande líder, como Prestes, teria força moral para subir ao palanque e, diante do povo, apertar a mão do verdugo que a dinâmica da história, naquele momento, tornara seu eventual aliado.
Bem, aí já demos um salto de 1935 para 1945. Foi nesse ano, por sinal, que Prestes disse a frase mais inteligente de sua vida. Considerou iguais as duas candidaturas à Presidência da República: "Não vejo diferença entre o brigadeiro Eduardo Gomes e o general Dutra". Hoje, Prestes poderia dizer com a mesma lucidez que não estava vendo nenhuma diferença entre Fernando Henrique Cardoso e Antônio Carlos Magalhães.
Em 1954, enquanto Vargas se debatia na crise que o levaria ao suicídio, a linha que Prestes impunha ao partido continuava a considerar o velho presidente, que já tinha a arma no bolso do pijama, "um lacaio do imperialismo americano".
Além de uma injustiça, era uma tolice: Vargas nunca fora, exatamente, um americanófilo. Com seu estilo centralizador, não-democrático, foi de longe o maior estadista que tivemos, o único político de visão telescópica que lançou articuladamente um projeto nacional.
No dia 24 de agosto de 1954, quando o povo soube do suicídio do presidente, as caminhonetes que distribuíam o jornal comunista (e as de outros jornais também) foram atacadas e incendiadas pela multidão que chorava.
Não foi a polícia nem foram os lacaios do imperialismo que atacaram o jornal de Prestes. Foi o povo naquilo que é mais povo: a dor, a lágrima, a revolta. Mais uma vez, e dramaticamente, Prestes falhara em suas análises da situação brasileira.
Tentaram corrigir o homem. Levaram Prestes a Roma, para ver se ele aprendia alguma coisa com a linha italiana, nascida em Gramsci, em Togliatti, em Longo, Amendola, continuada em Berlinguer.
Mas nem Prestes entendeu os comunistas italianos (que ele no fundo devia considerar agentes do imperialismo americano) nem os eurocomunistas quiseram nada com Prestes, constatando a impenetrabilidade de sua cabeça, honestamente dura, cabeça de gaúcho.

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