São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"A Justiceira" "americanalhiza" Globo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Com a estréia do seriado "A Justiceira", anteontem à noite, a Globo deu finalmente o seu grito do Ipiranga: tornou-se "independente" dos Estados Unidos ao mostrar que é capaz de reproduzir em casa, sem ficar devendo nada ao original, um gênero que desde pequenos nos acostumamos a ver dublado, protagonizado por canastrões norte-americanos.
"A Justiceira" é provavelmente nosso primeiro caso de "substituição de importações" no universo do entretenimento de massas.
A série realiza aquilo que o cinema nacional tenta fazer há décadas sem sucesso: livrar-se do fardo do subdesenvolvimento, da "estética da fome", do legado de Glauber Rocha, cujo gênio persegue e atazana há 30 anos, como um fantasma, os nossos cineastas.
Não é difícil explicar porque coube à TV, e mais especificamente à Globo, a proeza de realizar um produto ao mesmo tempo 100% nacional e 100% estrangeiro.
Se em relação ao cinema sempre alimentamos a expectativa de uma linha evolutiva, se sempre tivemos a ambição de que as obras expressariam, de alguma forma, as fraturas da chamada "realidade nacional", no caso da TV, dispersiva, fragmentária e não cumulativa por definição, esse problema nunca se colocou. A TV transmite a ilusão de que brota do nada todos os dias.
Como se trata de um transplante de laboratório, feito sem qualquer conexão e mesmo à revelia da sempre incômoda "realidade nacional" (olha Glauber de novo, entrando pela porta dos fundos), o preço que "A Justiceira" paga pelo grito de independência é alto, muito alto: podemos chamá-lo de "americanalhização" da TV brasileira (a expressão é do historiador Luiz Felipe de Alencastro, para descrever outro contexto).
Tudo se passa como se a Globo quisesse se vingar de outra prata da casa, ironicamente intitulada "Séries Brasileiras".
Se "A Justiceira" é um seriado tipo exportação, o é no sentido inverso dos produtos que a Globo sempre vendeu lá fora: não vamos mais encantar o mundo com nossos "exotismos", com "A Moreninha", "A Escrava Isaura", a viúva Porcina.
Vamos, sim, mostrar a eles que agora podemos competir de igual para igual, que nossos produtos têm o carimbo do ISO 9000, que passamos, enfim, pelo teste da globalização.
Mas onde está, afinal, a "americanalhização"? Seria mais fácil perguntar onde não está. Todos os cacoetes dos seriados americanos estão reunidos em "A Justiceira": pouco diálogo, muita ação, tensão permanente, câmera nervosa, sequências curtas, socos, pontapés, tiros sem parar, perseguição com carros, crime organizado, tráfico de drogas, gângster chinês, explosões e final apoteótico num cais de porto. O cardápio da violência glamourizada é completo.
Não faltou nem o tributo a Charles Bronson. Assim como o personagem da série "Desejo de Matar", Diana, a heroína vivida por Malu Mader, é movida a ressentimento: perde o marido por overdose, tem o filho sequestrado e o pai assassinado pela máfia. Resolve então ir à luta, integrando-se a uma "ONG da Justiça".
Nesse ponto, é inevitável voltar um pouco à realidade: ONG da Justiça rima com polícia paralela, que rima com Rambo, que nos leva à... favela Naval, Diadema.
A Globo terá que decidir entre a sede de vingança da "Justiceira" e o legalismo indignado de Lilian Witte Fibe no "Jornal Nacional".

Texto Anterior: Zé do Rock dá aula de "ultradoitsh"
Próximo Texto: O verdadeiro George Lucas contra-ataca
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.