São Paulo, quinta-feira, 17 de abril de 1997
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Marchas e contramarchas

MOACYR SCLIAR

Ele leu a história de Raul e Valdirene, os jovens que se enamoraram durante a marcha dos sem-terra. E se comoveu: que coisa bonita, um amor que nasce em meio à luta por um ideal comum. Comoveu-se muito, mesmo. De fato, ficou tão comovido que uma idéia lhe ocorreu: promover o casamento de Raul e Valdirene e dar-lhes o presente de núpcias.
O casamento seria celebrado no lugar mais adequado: a estrada. Todos os sem-terra estariam presentes e muita gente mais, partilhando a alegria dos noivos. Depois da festa, um grande banquete, comida farta. E aí ele anunciaria, alto e bom som, o presente de núpcias: uma propriedade de 20 hectares.
Não lhe era difícil arranjar essa terra. Proprietário de mais de 30 mil hectares, em vários lugares, tudo o que tinha de fazer era assinar um papel. E, assinando esse papel, passaria para a história como um grande proprietário rural que, no momento certo, soubera fazer uso da generosidade.
Estava nesses devaneios quando a mulher entrou no quarto. Ao vê-lo sentado, jornal na mão, irritou-se: já era tarde, tinham um compromisso social. Mas, intrigada, quis saber o que o marido estava lendo.
Ele mostrou a notícia sobre Raul e Valdirene. E contou seu plano.
Ela olhou-o, assombrada, ultrajada:
- O quê? Você quer dar terra a esses vagabundos? Terra que nem é sua, terra que nos foi deixada pelo meu falecido pai? Quem você pensa que é, Papai Noel? Você não toma jeito, mesmo. Não faz nada, vive de renda, e ainda que matar a galinha dos ovos de ouro. Vista-se e vamos.
Lentamente, ele se vestiu. Talvez a mulher estivesse com a razão, pensou. Desses sem-terra nunca se sabe o que esperar: a gente dá a mão, eles querem o braço. Hoje 20, amanhã mais 20 e lá se vão as terras todas. Eles que continuassem na estrada, reclamando como sempre. Quem quer marcha pela reforma agrária não pode esperar marcha nupcial.

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