São Paulo, segunda-feira, 21 de abril de 1997
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Ver para crer

CLÁUDIO WEBER ABRAMO

Imagine o eventual leitor que venha a convocar um encanador para reparar um vazamento. Após exame perfunctório, o profissional declara que seria necessário substituir todo o encanamento da casa. Instado a exibir concretamente as evidências materiais de comprometimento do sistema hidráulico, o encanador se recusa, declarando que, como profissional, seria responsável por identificar essas coisas e que, portanto, o leitor deveria acreditar nele -e pagá-lo, é claro.
É evidente que ninguém trocaria o encanamento nessas circunstâncias. Não obstante, é exatamente isso o que pretendem o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (Mare) e a Casa Civil da Presidência da República, ao anunciar que o governo enviará ao Congresso projeto de lei do Executivo em substituição à Lei de Licitações e Contratos (nº 8.666/93).
O projeto contém uma enorme quantidade de absurdos, sobre os quais, entretanto, as presentes notas não se deterão. Prestemos atenção nas justificativas apresentadas (elas são encontráveis na home page do Mare, www.mare.gov.br): após a promulgação da lei 8.666, em 1993, o governo teria passado a pagar mais por aquilo que compra e encomenda; como consequência das inadequações da lei, existiria um grande número de obras paralisadas em todo o país; o poder público estaria sendo obrigado a adquirir bens e serviços de baixa qualidade; a lei obrigaria ao cumprimento de rituais excessivamente envolvidos, o que estaria causando retardamento de decisões; as alegadas imprecisões da lei atual estariam dando lugar a grande quantidade de recursos administrativos e contestações judiciais (muitos deles interpostos com má-fé), com consequentes paralisações de processos, compras, obras etc.
Tais críticas, partindo da repartição responsável pelos processos administrativos do Estado, deveriam estar escudadas em levantamentos, estatísticas, comparações. Mas, não: como no caso de nosso hipotético encanador, o Mare se exime de fornecer uma única evidência concreta para o que afirma.
Ora, não parece excessivo exigir do governo que dê fundamentação para o que declara. Isso é pressuposto de qualquer argumentação que se pretenda racional e de boa-fé. Exigem-se informações colhidas junto a uma amostragem razoável de empresas estatais e órgãos da administração direta federal, estadual e municipal -municípios de pequeno, médio e grande portes-, abrangendo um período suficiente para que se possa comparar os desempenhos de órgãos públicos em suas compras e encomendas antes e depois da lei 8.666. Tais dados deveriam incluir:
1) evoluções históricas de custos unitários relativos a aquisições de bens, execução de serviços rotineiros, obras de engenharia etc.;
2) obras que se encontram paralisadas, explicitando-se as datas das respectivas licitações, quando as interrupções se deram, os motivos formais para as paralisações e as eventuais medidas administrativas tomadas;
3) situações em que o poder público se viu obrigado a adquirir bens de baixa qualidade e impossibilitado de corrigir o problema; especificações dos objetos, conforme expressas nos respectivos editais de licitação; o texto relevante dos respectivos contratos; o texto dos atos administrativos em que se constata a deficiência de qualidade; o texto das justificativas dadas pelas unidades administrativas responsáveis por não buscarem ressarcimento das empresas contratadas, na forma da lei atual;
4) comparações entre fluxos administrativos (O&M) correspondentes a licitações, contratações e acompanhamento de contratos, de um lado, e outras rotinas relevantes, de outro;
5) prazos decorridos entre a publicação de editais de licitação, a homologação dos vencedores e a adjudicação dos respectivos contratos;
6) recursos administrativos interpostos por licitantes e/ou outros; prazos médios de retardo de decisões administrativas por efeito desses recursos;
7) número de licitações que se acham suspensas por determinação judicial, por quanto tempo e com explicitação das ementas das respectivas iniciais.
Se o governo não for capaz de apresentar dados dessa natureza (repito que basta uma amostragem), então as justificativas que apresenta para uma mudança da lei resultarão desmoralizadas.
Em tempo: quem julgar razoáveis as exigências acima expostas pode exprimi-lo ao governo, enviando e-mails aos seguintes endereços: ccivil@planalto.gov.br e saur@mare.gov.br.

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