São Paulo, terça-feira, 22 de abril de 1997
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Voz de Te Kanawa está mais perto da de Deus

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há uma tradição nobre na ópera de mulheres loucas que cantam. A louca que canta parece dar prova de uma existência feminina para além do mundo ordinário (nos dois sentidos da palavra). Mas o que dizer da mulher que canta e não é louca, da mulher composta (nos dois sentidos), equilibrada em música, saudável no exercício da serenidade? Kiri Te Kanawa é o modelo por excelência dessa cantora do bem-estar: ela é uma artista da sabedoria, de conhecimento que se conhece a si mesmo e se dá ao mundo pelo que é, sem arrogância, por cordialidade.
Passada a marca dos 50 anos, "Dame" Kiri poupa, compreensivelmente, a voz. Nem a cantora, nem os agudos dão sinal da idade, mas isso é mais um efeito de sua arte. O recital é relativamente curto e entrecortado de intervalos relativamente longos. O programa da sexta-feira passada foi muito leve para o público e para a cantora -exceto as duas últimas peças de exibição (Bellini e Massenet), em que ficou claro tudo o que ela não mostrou, mas ainda guarda.
Quem for escutá-la hoje, no Cultura Artística, vai ter a sorte de ouvir um repertório um pouco menos "popular" -igual ao do primeiro concerto (de 8 de abril), incluindo "lieder" de Strauss e Liszt. Na sexta-feira, árias de Haendel e Mozart se misturaram a canções folclóricas e pseudo-folclóricas e, ainda, aos acordes de sétima e nona e às seduções eróticas de Puccini ("Morire", "In Quelle Trine Morbide" etc.).
Não seria justo reclamar demais do programa, que afinal de contas encantou uma platéia lotada. A voz do povo, dizem, é a voz de Deus -mas a voz de Deus, para mim, está mais perto da de Kiri Te Kanawa e pessoalmente gostaria de ter ouvido um pouco mais de música. O concerto impressionou muito mais pela presença humana e musical da cantora do que propriamente pelo que se ouviu. Vale o registro do enorme tato e simpatia de "Dame" Kiri quando passou um pito na platéia, que não parava de se abanar com os programas. "Por favor, ajudem-me a me concentrar... Gosto tanto dessa música e queria que vocês gostassem dela tanto como eu... Mas preciso me concentrar."
Um "legato" parece coisa simples: passar de uma nota a outra sem interrupção, num fraseado "ligado". Mas Kiri Te Kanawa cantando mostra todo o mistério que existe entre as notas, multiplicado pelos enigmas do timbre e da personalidade. Parece tão fácil, mas é quase impossível, coisa para meia dúzia de cantoras. O mais admirável é que tudo isso é feito de quase nada: gênio e ar.
A temporada do Cultura Artística -especialmente boa neste ano- começa em grande estilo. Além da programação anunciada, o Cultura oferece um número extra de concertos, incluindo o Quarteto de Roma (maio), um recitalo solo do pianista Radu Lupu (junho) e a Filarmônica de Nova York com Kurt Masur (também junho). Já é um consolo -um consolo e tanto- para o resto da vida. Vamos sobreviver.

Concerto: Kiri Te Kanawa
Quando: hoje, às 21h
Onde: teatro Cultura Artística (r. Nestor Pestana, 196, tel. 011/258-3616)
Quanto: de R$ 80 a R$ 160

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