São Paulo, sexta-feira, 25 de abril de 1997
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Biografia louva e desdenha Charles Chaplin

ANDREW SARRIS
DO "NEW YORK TIMES BOOK REVIEW"

Charles Chaplin (1889-1977) -que tem a biografia "Charles Chaplin and His Times", de Kenneth S. Lynn, lançada agora pela editora norte-americana Simon & Schuster- já era uma celebridade por volta de 1915, quando suas primeiras comédias consolidaram a persona do vagabundo nas telas silenciosas do mundo inteiro.
Platéias riram de suas palhaçadas antes mesmo de saber que o camarada baixinho com chapéu-coco, calças largas, bigodinho impertinente e bengala expressivamente mágica era Charles Chaplin, imigrante de sotaque cockney, artista de teatro de variedades.
Mas, praticamente ao mesmo tempo em que o Charlie das telas era aplaudido, o Charles da vida real já era vaiado, acusado de fugir covardemente da Primeira Guerra Mundial (na verdade, fora rejeitado pelo recrutamento militar por problemas médicos).
E assim seguiram a sua longa vida e a sua longa carreira: em meio a superlativos e apupos.
Kenneth S. Lynn, autor de elogiados estudos sobre Ernest Hemingway, Mark Twain e William Dean Howells, professor emérito do Departamento de História da Universidade Johns Hopkins, produziu um calhamaço prodigiosamente pesquisado e sob muitos aspectos fascinante, que se arrisca em todas as direções à procura do homem por trás do mito.
Infelizmente, o leitor de "Charles Chaplin and His Times" terá de escalar uma montanha de notas de rodapé, referências, extratos, breve contextualização de convulsões sociais e históricas, minibiografias de personagens famosos, opiniões de críticos e de historiadores, de amigos, inimigos, de esposas e amantes, até chegar ao túmulo em Vevey, na Suíça, de onde vândalos roubaram o caixão de Chaplin no dia 2 de março de 1978.
Para iniciar uma leitura compulsiva da obra de Kenneth Lynn, talvez seja melhor começar por alguns comentários de Sigmund Freud que o leitor encontra depois de percorrer cerca de dois terços do livro.
"Charles Chaplin esteve em Viena por estes dias", relata Freud a um amigo em carta datada de 1932. Chaplin, em viagem pela Europa, já havia se encontrado na Inglaterra com George Bernard Shaw e com o primeiro-ministro britânico Ramsay MacDonald, e, na Alemanha, com Marlene Dietrich e Albert Einstein.
Frio demais
Freud escreve: "Eu também deveria ter me encontrado com ele, mas estava frio demais para ele, que partiu rapidamente".
A seguir, Freud oferece suas observações sobre o famoso comediante: "Ele é, sem sombra de dúvida, um grande artista. Interpreta sempre uma única e mesma figura, sempre o jovenzinho frágil, pobre, indefeso e desajeitado, mas, no final, as coisas acabam dando certo".
"Mas julga você que, para interpretar esse papel, ele precisa deixar de lado o próprio ego? Ao contrário: ele representa sempre a si mesmo, tal como foi em sua mocidade sombria".
"Não consegue superar aquelas impressões e até hoje busca compensação pelas frustrações e humilhações de seu passado. Ele é, por assim dizer, um caso extraordinariamente simples e transparente".
"O conceito de que as realizações dos artistas sempre estão intimamente ligadas às lembranças, repressões e decepções da infância já produziu muitos esclarecimentos e, por essa razão, tornou-se muito precioso para nós".
Fantasia
À parte confirmar Sigmund Freud como um dos grandes críticos do século 20, essa passagem aponta para o tema central de Kenneth Lynn, que vai se insinuando por entre pilhas e pilhas de documentos, e é a fantasia jamais realizada de Chaplin de resgatar da loucura a desgraçada mãe, Hanna, por meio de sua arte e de seu sucesso.
Todo o resto é a viagem de uma longa vida solitária até Vevey, onde ele pôde criar, na melancolia de seu crepúsculo, um mundo vitoriano mais afável do que aquele ao qual fora atirado pela mãe.
Lá, Chaplin podia reinar como severo patriarca dos oito filhos e da mãe-menina deles, Oona O'Neill Chaplin.
Na aventura de Kenneth Lynn -seis anos, ao todo- pelos domínios da biografia cinematográfica, talvez o mais assombroso para o leitor seja o fato de que o autor admira o artista Chaplin com a mesma intensidade de seu desdém, que beira a repugnância, pelo ser humano Chaplin.
Eu não tinha idéia de que Chaplin escolhera Virginia Cherrill para o papel de florista cega em "Luzes da Cidade" porque, ao contrário das outras candidatas, ela não revirava os olhos para cima para demonstrar que era cega.
E a observação de Lynn sobre o desconforto de Chaplin durante as filmagens de "O Grande Ditador" -em oposição ao prazer de fazer pastelão com Jack Oakie, ator de vaudeville que interpretava Napaloni- nos remete às origens pouco refinadas da arte de Chaplin.
Ninfetas
Ao mesmo tempo, Lynn esmera-se em relacionar exemplos da má conduta permanente de Chaplin -a caça às ninfetas, a compulsão casanoviana, o discurso stalinista ingênuo.
Para o biógrafo, ainda mais dignos de censura são os inúmeros exemplos de frieza, egoísmo e ingratidão para com colegas, empregados e membros da família, exemplos recolhidos de diários, fofocas, historinhas de segunda mão e biografias (mas, naturalmente, não da autobiografia reconhecidamente pouco confiável do próprio Chaplin).
Essa torrente de ofensas consome páginas e páginas, até o ponto em que cabe perguntar como é que Chaplin escapou de ser linchado. Parece às vezes que Lynn considera sua obrigação destruir nossas ilusões e eventuais sentimentos afetuosos em relação a Chaplin.
Milionário aos cerca de 20 anos, esperto, mas inculto, Chaplin não era senão pretensioso em sua busca por respeitabilidade intelectual. Portanto, já era alvo para detratores implicantes muito antes de Kenneth Lynn juntar-se ao bando.
O malandro de rua que se tornou sir Charles Spencer Chaplin às custa de enorme persistência era muito zeloso de sua ascensão social e da citação dos nomes de gente famosa com quem se relacionava.
Mas Kenneth Lynn é ainda mais fervoroso na tentativa de condenar Chaplin por essas gafes pessoais. Tudo é questão de proporção. Exemplo: para provar que a infância de Chaplin foi mais propriamente carente do que miserável, Lynn mergulha em digressões sobre a pobreza em Londres, bairro a bairro, na época.
O tom obsessivamente crítico de Lynn me impede a formular algumas advertências de bom senso. Chaplin, afinal de contas, era figura incomum por ser, ao mesmo tempo, um artista da maior estatura e um executivo da indústria cinematográfica.
Poder e glória
Portanto, diferentemente de figuras comparativamente detestadas como Pablo Picasso e Robert Frost, criou um exército de inimigos potenciais entre seus empregados e subordinados. Chaplin tinha poder, não apenas glória.
Além disso, Chaplin nunca enfrentou verdadeiro declínio em sua carreira. Trabalhou por conta própria a vida toda, e, tendo vendido suas ações em 1928, manteve-se próspero em meio à quebra da Bolsa, durante a Grande Depressão e pelos anos seguintes.
Embora tenha perdido público de massa depois de "O Grande Ditador" (1940), continuou relançando seus filmes mudos clássicos de tempos em tempos, de modo a permanecer uma figura pública forte, conhecida de milhões de jovens frequentadores de cinema que jamais tinham ouvido falar, por exemplo, de Harold Lloyd.
Seus últimos filmes -"Monsieur Verdoux" (1947), "Luzes da Ribalta" (1952), "Um Rei em Nova York" (1957) e "A Condessa de Hong Kong" (1967)- podem não ter sido sucesso de público, mas transformaram-se em peças cultuadas por seus admiradores mais fiéis, como James Agee, André Bazin e François Truffaut.
Ou seja: Chaplin nunca desceu à categoria de deprimente fantasma hollywoodiano, como D.W. Griffith ou Buster Keaton, de modo que não existe em sua história a tragédia fácil que induz lágrimas de crocodilo de biógrafos a propósito da crueldade perene do show biz. Para profunda irritação de muita gente, Chaplin, até o fim de seus dias, viveu como um homem livre.

Tradução de Clara Allain

Livro: Charles Chaplin and His Times
Autor: Kenneth S. Lynn
Lançamento: Simon & Schuster (Nova York)
Quanto: US$ 35 (ilustrado, 604 páginas)

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