São Paulo, segunda-feira, 28 de abril de 1997
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Londres chama para o cenário pós-liberal

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Quando caiu o Muro de Berlim, tive curiosidade de ir ver o que se passou. Por sorte, vivi um ano por ali, testemunhando a fragmentação da Iugoslávia, o desabamento do império soviético, as fugas desesperadas dos náufragos albaneses.
Volto à Europa e, infelizmente, só terei dois dias para observar um outro momento histórico que me intriga e que gostaria de estimular na discussão brasileira: o pós-liberalismo inglês, com a possível vitória dos trabalhistas na eleição de 1º de maio.
A maioria dos críticos de Blair afirma que o liberalismo não está caindo de fato porque muitos dos componentes da era conservadora ficarão de pé, de forma que as verdadeiras diferenças entre os dois têm de ser pesquisadas com um potente microscópio.
É uma ilusão pensar que Blair será uma espécie de anti-Thatcher, e que sua ida para o poder vai significar uma onda de nacionalizações e reestruturação do Estado nas mesmas proporções de antes do período conservador.
Aliás, é, ao compreender que algumas mudanças são irreversíveis e que só podem ser criticadas com uma proposta mais avançada, que Blair mantém vivas suas chances eleitorais. Propor uma volta atrás seria uma espécie de suicídio.
O centro de toda a política inglesa, conforme acentua Antony Guiddens, é a globalização, e Blair precisa dar uma resposta diferente da de Thatcher, mas num cenário no qual avança cada vez mais a liberdade do fluxo de capitais e mercadorias, sobretudo a mercadoria informação, favorecida pelas grandes transformações da telemática.
Um dos temas que me interessam é o desemprego. Que caminhos os ingleses vão adotar para encarar o problema? Até o momento, tanto eles como os norte-americanos optaram pela flexibilização e, de uma certa maneira, achatando um pouco seus trabalhadores, conseguiram manter um nível menor que o dos outros. No entanto, experiências mais social-democratas, como na Holanda e na Áustria, também estão encontrando seu caminho e podem ser consideradas, relativamente, bem-sucedidas.
Mas o problema que coloco é o seguinte: existe volta na flexibilização? Trabalhadores que deixaram empregos estáveis podem sonhar com novos empregos da mesma natureza ou devem aprender a se virar, a se reequilibrar num mundo mais complexo?
Levo comigo o livro "Depois do Sucesso, Fim de Século, Ansiedade e Identidade". Seu autor é Ray Pahl, um sociólogo que se especializou em pesquisar homens de sucesso na Inglaterra.
O livro constata que a idéia de carreira, como uma gradação de passos ascendentes, está sendo revolucionada. Poucos esperam, como o faziam na década de 50, conquistar um posto e subir pacientemente na escala hierárquica.
No lugar dessa expectativa, adota-se uma tática de combinar possibilidades, explorar vários caminhos para se manter vivo e, alguns casos, prosperando.
Essas mudanças que se dão entre empresários e gente da classe média, no momento, reduzem um pouco a figura do trabalhador apaixonado pela sua empresa, apaixonado pelas suas tarefas. Há cada vez mais uma tendência a ampliar o horizonte cultural e a buscar um equilíbrio entre vida profissional, afetiva, familiar e espiritual.
Os valores pós-materialistas já vêm se infiltrando nas sociedades européia e norte-americana há alguns anos. Mas, por incrível que pareça, o colapso do pleno emprego acabou impulsionando o colapso de uma idéia de carreira e revolucionando o próprio conceito de sucesso.
Os exemplos servem para mostrar como Blair vai trabalhar numa situação que se modifica com rapidez e para a qual não se pode achar resposta no velho baú trabalhista.
Os dilemas ingleses podem parecer remotos para o Brasil, onde a invenção de emprego tem algumas soluções ululantes como a reforma agrária. Mas quem pegar o governo depois das transformações econômicas de inspiração liberal, dificilmente voltará atrás. Decretar, de novo, o monopólio estatal nas telecomunicações será impensável a médio prazo.
Em toda a parte, o legado do liberalismo colocará problemas novos para um débil e carcomido arsenal de soluções. Suponho, embora a suposição seja muito prematura, que o fenômeno individual de reequilíbrio num mundo de escassos empregos, acabará se transferindo para o modelo de desenvolvimento.
Dificilmente, os chamados grandes objetivos de crescimento poderão ignorar os valores pós-materiais. O próprio conceito de desenvolvimento será colocado em xeque. Aliás, já o foi pela ecologia e sobreviveu acrescentando o adjetivo sustentável. Novos embates virão, e Londres no fim-de-semana será um bom lugar para farejá-los, desde que se consiga ler para além dos discursos otimistas dos políticos.
Há quem, no entanto, considere que o eleitorado inglês pura e simplesmente está se movendo para a esquerda, e que a resposta de Blair deveria ser muito mais radical, como nas velhas propostas do Labor, sempre traídas quando chegam ao governo.
Pode-se falar tudo no momento. Creio, no entanto, que é preciso, pelo menos, admitir que a situação é complexa e tentar aprender com ela. Caso contrário, a política pode se reduzir a uma simples pajelança, em que cada um recita sua oração, indiferente ao fluxo dos fatos.

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