São Paulo, segunda-feira, 28 de abril de 1997
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Ratos e homens

CONSUELO DE CASTRO

"Todos correram ao encontro de seus grilhões, acreditando assegurar sua liberdade." Rousseau A barbárie de Diadema, veiculada em toda a mídia com frequência vertiginosa, foi a gota d'água que explodiu o tonel sem fundo do binômio violência e impunidade, e expôs de forma cruel a impotência da Justiça brasileira. A nós, pessoas físicas e emocionais, restou a consternação, o gosto amargo do pânico e um impasse dos mais radicais: como revidar, dentro da lei, aos fora-da-lei que torturaram e mataram?
Como, se essa mesma lei serve de prerrogativa aos que a violaram e -por meio de interpretações oportunistas- de escudo a seus defensores?
Com efeito, a massa sangrenta das ações policiais e a lerdeza das reações institucionais confronta-nos com dois tipos de saída, ambas afeitas à lei ou à sua negação, ambas implicando, muito além da opção de cada um, no próprio conceito de Estado de Direito, sua integridade ou dilaceração.
A primeira saída preserva o Estado de Direito e nos convida a transformar a indignação passiva em repúdio ativo e a opinião pessoal em pública.
Por esta via, cada cidadão abandonaria a condição de espectador estarrecido, organizando-se enquanto agente coletivo de pressão, ganhando ruas e gabinetes de autoridades ditas competentes, delas cobrando punição aos culpados e total transparência das investigações e dos trâmites judiciais de cada caso -o que contribuiria para que o Código Penal deixasse de servir de muro de arrimo a magistrados falaciosos, peritos cínicos e governantes indiferentes.
Alinharíamos as forças vivas do país e de fora dele -como os fóruns mundiais de defesa dos direitos humanos- para compor uma espécie de imensa "Anistia Internacional", de cunho nacional e emergencial, que primeiro marcharia nas ruas e centros de decisão do país, e depois se estruturaria em termos de longo prazo, com propostas concretas.
Em suma, um protesto massivo e uníssono. Socialmente amplo, pragmático e permanente.
Tão massivo e uníssono que fosse impossível não vê-lo, não ouvi-lo e a ele não ceder -entendendo por "ceder" não um arriar de princípios, mas a pura e simples exposição da verdade, visto que só a ela cabe engendrar princípios e erigir uma ética.
Tão socialmente amplo que não clamasse apenas em nome das camadas favorecidas, mas de toda a sociedade.
Tão permanente e pragmático, que não carecesse da temerária filmagem de cinegrafistas amadores, para reavivar lembranças e providências.
O clamor do povo na rua provou que funciona em fatos de nossa história recente, como por exemplo, o impeachment de Collor. E deverá funcionar agora, que se trata de algo muito mais urgente e grave: o direito à vida e à integridade física, sem os quais não há cidadania, nem cidadão. Só sangue derramado.
A segunda via é fazer justiça pelas próprias mãos, uma vez que a que deveria ser feita por mãos institucionais prescreveu por decurso de prazo.
É o famigerado olho-por-olho, dente por dente, que, além de um sem número de sequelas trágicas, sancionaria o restabelecimento do regime de exceção e a reinstitucionalização da força bruta, a mesma que se usou nos tempos da ditadura para "defender a liberdade contra os comunistas", e que, nesse caso, se reutilizaria para enquadrar algozes e vítimas.
É uma escolha sombria. Implode o Estado de Direito e nos remete ao Estado de Natureza, à imagem e semelhança dos que criaram e sustentaram a ditadura militar, em especial os paus-mandados da PM -leia-se POLÍCIA MILITAR: toda ela, com raras e honrosas exceções, em todo o território nacional e ao longo de toda a sua história, desde que foi fundada. (Ou alguém crê em fato isolado?)
Há uma terceira via, mais sombria ainda, que é nos fazermos de mortos e matar dentro de nós a condição humana. É por esse caminho sem volta que tentam nos arrastar para que, reduzidos à ratos, venhamos a acreditar que Rambo atirou no chão, os 111 cadáveres do Carandiru foram feitos em legítima defesa e Corumbiara, Xapuri, Vigário Geral e Eldorado dos Carajás aconteceram em razão de "combate leal". E os espancamentos e torturas de Diadema e Cidade de Deus, que assistimos ao vivo, nada mais eram que ensaios da peça "Ascensão e Queda do Terceiro Reich". Já o menino martirizado com soda cáustica entrou na tina por engano. E PC morreu por amor.
Resistiremos. Recusaremos os dois últimos caminhos. Para que a Justiça não se confine a uma metáfora cega, e a democracia, a figura de retórica.

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