São Paulo, terça-feira, 29 de abril de 1997
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Impressões digitais e outras

JANIO DE FREITAS

No rastro do seu empenho em vender a Vale do Rio Doce, o governo está deixando marcas inapagáveis de comportamentos incompatíveis com uma administração pública decente. A representação do deputado Miro Teixeira ao Ministério Público, baseado em exposição oral feita pelo presidente do BNDES na Câmara dos Deputados, sobre pormenores da venda da Vale, é um exemplo de manipulações que um processo respeitável de privatização não cometeria, por motivos éticos como por motivos legais, mesmo.
Ao admitir que foram adotadas restrições à participação de pelo menos dois possíveis concorrentes (australianos) à compra da Vale, para assim atender a preocupações dos clientes japoneses, Mendonça de Barros referiu-se, querendo ou não, a um edital viciado como qualquer outro dos que têm provocado escândalos nacionais, também pela técnica de pormenores que, prejudicando certos possíveis concorrentes, favorecem outro.
Como nas outras concorrências escandalosas, o governo tem o seu pretexto para a exclusão que, na análise feita pelo deputado, beneficiou a empresa sul-africana Anglo American. Seria a intenção de evitar que um grupo minerador australiano concentrasse fatia muito vasta no mercado mundial de ferro. Ao que se deve acrescentar: contra a conveniência, não dos brasileiros, mas dos japoneses. E ainda: a evitar concentração excessiva, por que o BNDES não a impediu nos setores de celulose e de alumínio, de interesse direto na economia brasileira? A violação de normas se mostra, no empenho pela venda da Vale, como se fosse ela própria a norma do governo. Sob qualquer aspecto do processo de privatização da Vale, encontram-se manipulações inaceitáveis pelo decoro administrativo. Até no penúltimo ato anterior ao leilão, que foi o credenciamento dos possíveis candidatos, nem o mínimo rigor prevaleceu.
Nas condições fixadas para a privatização, o limite do credenciamento eram as l6h da quinta-feira passada. Mas Benjamin Steinbruch, empresário de muito prestígio com Fernando Henrique Cardoso e Sérgio Motta, não conseguiu inscrever, no prazo exigido, um grupo de candidatos consorciados com a Companhia Siderúrgica Nacional, por ele comprada na privatização. Por ordem ou autorização emitida pelo Planalto, a regra fixada tornou-se volátil: o prazo foi ampliado para as 18h30. Nem assim Steinbruch conseguiu apresentar a documentação de um consórcio. E mais uma hora, estaria bem? Sem problema: condições oficiais no lixo, o prazo foi para 19h30.
Duas observações, a respeito, são inevitáveis. Mesmo que a quebra da regra tenha sido útil também ao consórcio Anglo American/Vororantim, que quase ficaria na inconveniente situação de concorrente único em uma privatização já mergulhada em suspeitas e denúncias, o comportamento do Planalto e do BNDES configurou um favorecimento inaceitável pela legislação brasileira.
No caso, há um agravante no favorecimento: o favorecido tem como um de seus diretores o filho de Fernando Henrique Cardoso. Isso não seria o bastante para levar o favorecimento até a vitória certa no leilão, a ser decidido pelos lances também do outro candidato. Mas é suficiente para macular o empenho do governo nessa privatização com mais um comprometimento moralmente inapagável.

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