São Paulo, quinta-feira, 1 de maio de 1997
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Dissecação da esquerda

OTAVIO FRIAS FILHO

O cadáver da esquerda brasileira está de volta à mesa de autópsias, dissecado por dois filmes que estréiam hoje, "O Velho" e "O Que É Isso, Companheiro?". O primeiro é um documentário com desejos de ser ficção e o segundo é ficção estritamente baseada em fatos documentais. Mas a convergência entre eles vai muito além.
Com texto algo rudimentar, "O Velho" mostra imagens e depoimentos sobre a vida do capitão Luís Carlos Prestes, rebelde tenentista, líder da célebre coluna e da "intentona" de 35, preso durante nove anos, depois eleito senador, depois exilado, ditador inconteste no Partido Comunista Brasileiro por meio século.
Em grande parte desconhecidas, as imagens são extraordinárias. Elas neutralizam a pieguice dos enxertos "ficcionais" (um jardim de rosas ilustra as estações da vida do herói; uma atriz aparece ao pé do fogão: é sua mãe) e o produto de sua montagem é didático e não raro empolgante. São duas horas que parecem menos.
Sendo um filme de ação, "O Que É Isso, Companheiro?" descongela o documentalismo de "O Velho", um pouco como seus protagonistas, guerrilheiros no Rio dos anos 60, romperam com a esquerda de Prestes para fazer a revolução com as próprias mãos. Os dois filmes podem ser vistos como sequência de uma só história.
Virou clichê dizer que os filmes, tanto quanto os vinhos nacionais, estão melhorando. Com os altos e baixos que conhecemos, com o que resta de diálogo rígido e de luz dura, "O Que É Isso?" reúne um leque de qualidades poucas vezes vistas juntas num filme brasileiro: tem técnica, tem unidade, tem pressa.
Baseado no livro autobiográfico de Fernando Gabeira, um marco para duas gerações, o filme de Bruno Barreto se desdobra com grande vivacidade de situações e surpresas, sem incidir quase nunca no folclórico ou no esquemático. Não existe aquele clima, comum no cinema brasileiro, de que não está acontecendo nada.
Ambos os filmes mostram as desventuras de heróis radicais num país que tem horror ao radicalismo, pelo menos organizado. A "cordialidade" brasileira está muito bem assentada, como mostram os clássicos da nossa sociologia, sobre uma formação social que é tão permeável aos indivíduos quanto impermeável às classes.
Vendo os filmes, porém, perguntamos se o obstáculo não é menos o radicalismo do que a coesão mental. A coerência de Prestes foi saudada, até pelos adversários, como um assombro da natureza, como as Cataratas do Iguaçu. Os estudantes de Gabeira foram parar no terrorismo arrastados por uma lógica cerebral, retórica.
Todas as palavras de ordem eram convenções de trânsito, já não se pensava há muito sobre o seu conteúdo. Essa é a tentação do radicalismo, perder-se em mania, em automatismo. Não é outra a essência da crítica de FHC à esquerda. Terá ela ainda alguma coisa a contrapor, além das ilusões e dos mártires que povoam esses dois filmes?

"O Velho - A História de Luiz Carlos Prestes", 1997. Direção: Toni Venturi.
"O Que É Isso, Companheiro?", 1997. Direção: Bruno Barreto.

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