São Paulo, sábado, 3 de maio de 1997
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Segunda Guerra adiou o 1° festival

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O principal festival de cinema do mundo nasceu como ato de resistência aos totalitarismos de Hitler e Mussolini. Cannes, suprema ironia, foi concebido em Veneza.
Nada melhor que ceder a palavra a seu criador, Philippe Erlanger: "Tudo começou em 3 de setembro de 1938 na mostra de Veneza (criada em 1932), onde eu era representante do governo francês. Soubemos que o júri decidira conceder o prêmio a um filme americano, mas a pressão alemã na nação-satélite do eixo Roma-Berlim foi tamanha que no último momento o prêmio foi para 'Olimpíadas'. A obra-prima de Leni Riefenstahl não era qualificável, de acordo com o regulamento, por se tratar de um documentário. A decisão provocou uma grande indignação entre os democratas."
"No dia seguinte", prossegue, "peguei o trem para Paris, esperando ser mobilizado ao chegar, pois a guerra parecia iminente". "Não consegui dormir e, em vez de um sonho, tive uma idéia", conta. Cannes estava a caminho.
Em casa, a idéia progrediu rapidamente, marcando-se não por acaso para setembro de 1939 a abertura de uma grande mostra na França democrática. Biarritz e Cannes dividiram as preferências, mas a balança pendeu para o belo balneário no sul do país.
A inauguração foi marcada para 1º de setembro. O pai do cinematógrafo, Louis Lumière, aceitou a presidência honorária. Hollywood engajou-se com uma delegação encabeçada por Gary Cooper, Mae West e Tyrone Power.
Um forte programa, com títulos da Bélgica, França, Grã-Bretanha, EUA, URSS e Tchecoslováquia, foi definido, incluindo "O Mágico de Oz", de Victor Fleming, e "O Fantasma da Esperança", de Julien Duvivier. Tudo pronto. Eis que Hitler invade a Polônia. A Segunda Guerra vitimava a que seria a edição inaugural do Festival Internacional de Cinema de Cannes.
Seis longos anos arquivaram o projeto, retomado ao final do conflito. Erlanger não desistira e, com Georges Huysmans na presidência, o festival tornou-se realidade em setembro de 1946.
O evento, lembrou o futuro diretor-geral Robert Favre Le Bret, parecia "destinado a uma existência modesta". "A poucos meses da abertura, o governo francês recebera apenas sete respostas a seus convites", escreveu. Mas, em cima da hora, 21 países (nada de Brasil) mandaram representantes.
Num esforço para se confirmar como "o primeiro símbolo tangível da paz reencontrada" (sempre Le Bret), o festival exagerou na divisão do bolo. Foram 11 Grandes Prêmios na disputa de longas, um para cada país representado.
Alguns fazem parte de qualquer cinemateca obrigatória: "Farrapo Humano", de Billy Wilder, "Desencanto", de David Lean, e, sobretudo, "Roma, Cidade Aberta", de Roberto Rossellini -símbolo máximo do festival vitorioso, tanto política quanto esteticamente, revelando a despojada e revolucionária escola neo-realista.
O triunfo não era ainda definitivo. Dificuldades financeiras inviabilizaram a mostra em 1948 e 1950. Contudo, o Festival de Cannes já parecia fadado ao sucesso.
Só a revolta de maio de 1968 voltaria a interromper a escalada do festival -Polanski, Truffaut, Godard e um barbudo Louis Malle à frente de inflamados debates que substituíram as projeções.
Aos 50, Cannes é o principal encontro cinematográfico do mundo. A insônia de seu criador, Erlanger, pauta hoje o sonho acordado de milhões de espectadores.

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