São Paulo, segunda-feira, 5 de maio de 1997
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'Educação de adultos virou ensino de segunda classe'

LUCIA MARTINS
DA REPORTAGEM LOCAL

O Ministério da Educação está transformando os projetos de ensino de jovens e adultos em "educação de segunda classe".
A crítica é feita pelo educador Sérgio Haddad, secretário-executivo da Ação Educativa (organização não-governamental que há cerca de três anos faz pesquisas na área) e professor da PUC-SP.
"A educação de adultos está deixando de ser um direito mais amplo e passando a ser uma educação de segunda classe. Ela foi jogada para o lado compensatório. Hoje, quem faz alfabetização é o Comunidade Solidária, que é um espaço compensatório", diz Haddad.
Seguidor das idéias de Paulo Freire, Haddad repete alguns dos conceitos criados pelo educador morto na última sexta-feira e critica a política do ministro Paulo Renato Souza (Educação), que prioriza o ensino básico infantil.
"Essa é uma política de exclusão", diz Haddad, que coordenou o curso noturno do Colégio Santa Cruz (São Paulo) por 20 anos e hoje organiza -junto com a Unesco- uma pesquisa que vai mapear o analfabetismo em São Paulo.
Segundo ele, o governo federal está "empurrando" para os municípios a responsabilidade pelos cerca de 19 milhões de analfabetos com mais de 14 anos existentes no país, segundo o censo de 1991.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida à Folha na tarde de anteontem.
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Folha - Como o sr. avalia a educação de adultos hoje no país?
Sérgio Haddad - Com muitos problemas. O ministro da Educação deixou de tratar a educação de adultos como um direito mais amplo e passou a tratar como uma educação de segunda classe. Hoje, quem faz alfabetização é o Comunidade Solidária, que é mais um espaço de política compensatória do que propriamente um espaço de política universal. Houve uma mudança que nasceu a partir de 1988. Apesar de a Constituição ter assegurado o direito de a educação de adultos ser entendida como um direito de todos, de 88 para cá, ela vem perdendo o seu status de universal.
Folha - O sr. poderia dar algum exemplo que mostre essa tendência do governo federal?
Haddad - O Fundo de Valorização do Magistério, por exemplo, que foi o grande instrumento implantado pelo governo federal. Ele foi produto de uma mudança constitucional. Várias modificações foram feitas e, apesar de o Congresso ter aprovado a inclusão da educação de adultos, foi vetado no plano federal. Por isso, o dinheiro só é repassado pelo número de alunos do ciclo básico regular. O supletivo é excluído.
Folha - E o que isso indica?
Haddad - Indica que a educação dos adultos vem perdendo muito de seu conceito. Principalmente porque o mote do ministério hoje é que se deve privilegiar a educação infantil em detrimento das outras. Eles acham que, como uma parcela da população já perdeu o bonde da história, é a educação infantil que vai resolver o problema da escolaridade básica no futuro. Esse é um conceito de exclusão. Para piorar, quando o governo pensa em educação de adultos, os projetos são voltados apenas para a questão do mercado de trabalho. Temos que tratá-la de uma maneira global. Educação tem que servir não só para o trabalho, mas para o plano social, comunitário etc. Essa é a base que temos que usar.
Folha - Isso lembra as idéias do Paulo Freire...
Haddad - Claro. O Paulo tentou transformar o analfabeto em ator social, que participa. E o que estamos fazendo hoje é o contrário. Estamos caminhando na contramão da história. Todos os países do Primeiro Mundo souberam reconhecer a importância dos programas de educação de adultos.
Folha - O que o governo tem que fazer na sua opinião?
Haddad - Ele tem que ter um papel de indutor de programas de educação de adultos. A gente nota que está havendo dois movimentos. O primeiro é a tentativa de levar o problema do plano federal para o municipal. O governo federal sempre teve uma estrutura muito forte nessa área, como o Mobral, por exemplo, que foi concebido de cima para baixo. Mas isso foi modificado até chegar à idéia de municipalização. Só que nesse caso, ela não vem com uma ação coordenada. O governo federal está deixando de ter uma atitude ativa no sentido de criar condições para que os municípios possam ter seus próprios programas de combate ao analfabetismo. O município acaba assumindo, muito mais por pressão da comunidade do que por uma política educacional.
Folha - E qual seria a política ideal nessa área?
Haddad - Eu acho que o município é fundamental nesse caso. Mas tem que haver dinheiro e condições para isso. Experiências interessantes já têm acontecido em algumas cidades, como Diadema e Campinas. Mas quem é que consegue fazer isso? Quem tem dinheiro e vontade política. São ações isoladas porque a maioria dos municípios não tem dinheiro. Por isso, uma política do Executivo é essencial. Ele tem que criar parcerias com a iniciativa privada, programas de alfabetização em empresas e aumentar a verba para programas na área.
Folha - E o Comunidade Solidária não é um caminho?
Haddad - O grande problema do Comunidade Solidária é que ele é insuficiente. Este ano eles vão atingir 10 mil em um universo de 19 milhões. Você vai achar ruim? Claro que não, quanto mais melhor. Mas são necessários outros programas. Além disso, a questão é que o programa do Comunidade não tem continuidade. Depois dos quatro meses de programa, para onde vão essas pessoas?
Folha - O sr. não acha que há um problema de falta de recursos?
Haddad - Tem que haver uma troca de lógica. É uma lógica de que, em uma sociedade, o governo tem que ter responsabilidade por todos os seus cidadãos. E o governo tem que criar recursos para atender essa população. Por que é possível utilizar recursos no Proer e não é possível aumentar os recursos para educação?
Folha - O sr. não acha que outro grande problema é a falta de professores capacitados para fazer ensino de jovens e adultos?
Haddad - Esse é um ponto importante. O que a gente sente é que as universidades tratam pouco essa questão. São poucas as que contemplam experiências específicas nessa área. Não existe, por exemplo, uma disciplina sobre educação de adultos nas faculdades de educação. Fiz um estudo na área acadêmica em relação a esse assunto e, nos últimos dez anos, houve cerca de 200 teses sobre o assunto. Isso é menos de 5% do total de teses produzidas no período.

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