São Paulo, segunda-feira, 5 de maio de 1997
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Algo está começando e não é mais o liberalismo

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Louca ou lúcida, a vaca foi para o brejo. A experiência de 18 anos do liberalismo acabou num Primeiro de Maio ensolarado, que concluiu o mais longo processo eleitoral do século. Como disse um jornalista do "The Guardian", até uma bactéria sabia que alguma coisa precisava mudar na Inglaterra. Mudar o que? Em que direção? As respostas não são claras, mas está começando aqui um processo que pode dar o que falar em todo o mundo.
A classe média estava desapontada. Desde o princípio da década de 90 que se acumulam os sinais de desconcentramento. Milhões de empregos foram perdidos. Nem todos puderam se tornar consultores de sucesso. Além disso, a pergunta que mais se faz na Europa, hoje, acabou dominando o processo eleitoral: o futuro será pior para as crianças? Muitos acham que sim, que o darwinismo social é uma resposta apenas para os melhores dotados. A maioria não se realiza nele.
Para um observador brasileiro, a idéia é de que agora voltam os sindicatos com toda a força, os intelectuais da esquerda clássica recuperam seus papéis, as empresas ineficientes serão salvas pelo governo. Seria um engano supor que a alternativa ao liberalismo é uma volta ao passado.
O equivalente do frango no Plano Real, aqui na Inglaterra, é a casa própria. Mais da metade dos ingleses tiveram acesso a ela. Os serviços, reconhecem os intelectuais de oposição, melhoraram muito nos últimos 18 anos, principalmente os telefones. A Inglaterra ficou mais rica, no entanto resolveu que era hora de mudar.
Tony Blair visitou um hospital aqui e foi questionado pelos internos: como mudar o sistema de saúde, se não se vai usar mais dinheiro. Ele afirmou que faria isso apenas com melhor administração.
Se conseguir, será um exemplo importante para o Brasil. Mas o problema básico continuará existindo para ele e todos os governos do mundo: as expectativas em torno da educação e saúde crescem mais rapidamente do que a possibilidade de aumentar os impostos. Como sair dessa? Há uma grande efervescência intelectual por aqui. Muita gente discute alternativas. As estantes sobre estratégia estão abarrotadas nas livrarias.
Dois nomes serão ainda ouvidos no Brasil. Robert Skidelsky, o biógrafo de Lord Keynes, tem uma fundação "think tank" e acha que Keynes foi descartado prematuramente. Anthony Giddens, que dirige a London School of Economics, tem um grande trabalho sobre a modernidade e uma crítica do marxismo. Vai contribuir especialmente com uma nova visão do Estado de bem-estar social. Giddens incorporou algumas críticas da direita e pensa num Estado que ensine a pescar ao invés de dar o peixe. Ele chama isto de um Estado generativo de políticas de solidariedade.
O debate sobre o pós-liberalismo vai envolver o país e, certamente, Blair deve estimulá-lo porque ninguém mais do que ele precisa saber para que direção os ventos devem soprar. Em termos de repercussão no Brasil, alguns temas podem ser relacionados:
a) O desemprego crescente acaba por levar a insegurança mesmo para os poucos que se deram bem. A maioria da sociedade quer educação e saúde garantidas pelo Estado, sem falar em outros serviços que também são valorizados por ela, como a Justiça por exemplo. Se não houve garantia de apoio social, mesmo as pessoas bem-sucedidas começam a temer pela sorte dos seus filhos.
b) As empresas que sobrevivem à concorrência, como foi o caso da British Airways, acabam se fortalecendo. Mas não há apoio popular para injetar dinheiro público em empresas que não se mantêm nas próprias pernas, num contexto de competição.
c) sindicatos com uma visão estreita e corporativa tendem a perder força e sua decadência obriga os partidos social-democratas a rever as relações entre os dois. A visão de solidariedade, substituindo o "cada um por si" do liberalismo, não significa que todas as teses da direita foram negadas. Pelo contrário, algumas de suas críticas foram integradas.
d) o chamado sucesso econômico, apoiado em índices positivos, não basta mais para manter um governo, depois de 18 anos. Como diz um amigo inglês, na casa de quem jantei no dia das eleições, mesmo os políticos bem-sucedidos precisam, de vez em quando, de um pontapé na bunda para lembrarem que são dependentes da aprovação popular.
e) governos longos tendem à corrupção. Um dos casos mais importantes na Inglaterra foi o afundamento do navio General Belgrano, que resultou na morte de mais de mil argentinos. Os fatos foram manipulados, Thatcher mentiu, assim como houve manipulação no episódio de venda de armas para o Iraque.
g) o sucesso liberal representa melhoria para um setor da população. Crescem as fortunas. Na Inglaterra, o grupo de mais de 400 milhões de dólares aumentou em 20% seu patrimônio. Da mesma maneira, capitais de vários pontos do mundo fluem para o país mas, ao contrário do que se imagina, não aumentam dramaticamente a oferta de empregos.
Naturalmente, a única coisa certa é que o país que começou a onda liberal se cansou dela. Centenas de novas perspectivas estão no ar. No momento, vejo apenas comemorações, lembro-me dos teóricos ingleses, como Giddens, que se anteciparam ao fim da "era Thatcher" e tentaram, de alguma forma, apresentar caminhos. Muita gente continua acreditando que os políticos são todos iguais e que nada mudará com a ascensão do Labour. Outros acham que as diferenças ideológicas ficaram tão insignificantes que nada vai salvar a política da monotonia. Mas a grande questão continua no ar: foi uma corrente de esperança que derrubou os conservadores. Responder a ela significa buscar o espaço de liberdade possível dentro de uma pesada cadeia de limitações. Os teóricos aqui inventaram uma palavra-chave: "connectedness". Como gerar formas de solidariedade sem desestimular o impulso da empresa privada, como criar áreas de proteção, oásis de subsídio e não competitividade sem danos ao conjunto de livre mercado? Enfim, como reconciliar liberdade e interdependência? É uma pergunta modesta, mas tenho a impressão de que vai dominar esse momento histórico inglês, com grandes possibilidades de interessar também aos consumidores de vodka Orloff, aquela do eu sou você amanhã.

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