São Paulo, segunda-feira, 5 de maio de 1997
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Artista quer espectador sem crença na imagem

CELSO FIORAVANTE
DA REPORTAGEM LOCAL

Em entrevista à Folha, artista plástico Vik Muniz falou de seu desejo de colocar o espectador em uma posição mais analítica, da necessidade de volta a temas "banais" na arte e da exaustão das imagens.
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Folha - Quando você produz uma obra, seu desejo é subverter uma crença na fidelidade da imagem?
Vik Muniz - Subversão não é bem a palavra. Você subverte alguma coisa que existe. Eu estou tentando desenvolver imagens que colocam o espectador em uma posição mais analítica. Ele vai olhar imagens que vão lhe perguntar o que é uma imagem.
Essas imagens tem uma cumplicidade autônoma. Elas são problemáticas dentro do contexto daquilo que é uma representação, em termos de percepção e cognição.
A função principal do meu trabalho é colocar o espectador em uma posição que ele pare, olhe, note algo de familiar e dê uma segunda olhada. Na primeira, ele olha. Na segunda, ele vai ver a imagem. Existe uma diferença muito grande entre perceber e compreender o mundo da linguagem e da representação. O fato das pessoas não terem conhecimento dessa diferença traz consequências desastrosas para a própria sociedade.
Existem sistemas dentro da sociedade que são desenvolvidos para tirar vantagem dessa discrepância entre o ver e o compreender. Como artista, acho que tenho a obrigação moral de engajar o espectador nesses processos.
Folha - Existe em sua obra uma nostalgia de um olhar mais atento do espectador?
Muniz - Existe sim. Os temas principais da arte estão esgotados. As imagens têm sido usadas para uma infinidade de aplicações que bombardeiam o espectador. Isso faz com que ele perca o interesse por imagens que não tragam grande nível de choque e de movimento. Elas funcionam como uma espécie de imunizador.
Você vê cada vez mais fotos de nudez, pornografia, crime, violência, miséria... Fotos que se apresentam em três dimensões, hologramas, imagens virtuais...
Eu trabalho com imagens que são subestimadas inicialmente, mas que exigem um segundo olhar. É essa a diferença que existe entre o mágico que ilude toda uma platéia com um jogo de baralho e aquele que usa toda uma parafernália. A simplicidade da imagem é a que cria a melhor ilusão.
Folha - Não é o bombardeio de imagens que está subestimando o poder da imagem?
Muniz - O uso de imagens para fins comerciais, esse tipo de imagem do qual estamos conversando, eles tendem a procurar a perfeita transparência.
A transparência é fazer com que a imagem se pareça cada vez mais com uma idéia, como uma coisa que está acontecendo diretamente na sua cabeça, sem qualquer filtro de representação. No meu caso, estou tentando demonstrar como esses filtros acontecem, quais são suas funções.
Pode ser a fotografia de um desenho ou de uma escultura, mas tudo está um pouco confuso. Essas fotografias têm uma vida semântica maior.
As fotos chocantes são muito interessantes de ver, mas ela duram muito pouco na cabeça. Elas são assimiladas muito rapidamente.
Folha - Você estava dizendo que uma grande parte da arte contemporânea hoje é produzida para causar um impacto e que isso negaria uma característica primeira da arte, que é ser uma mídia mais lenta. O que acontece com o espectador que vê a sua imagem e sofre esse impacto imediato?
Folha - Eu prefiro que a coisa aconteça mais devagar. Por que as pessoas ainda vão no museu olhar pinturas? Existe todo um ritual de se ver uma coisa e tentar entender que está se perdendo com essa profusão de imagens na mídia.
Eu quero chocar o espectador em seu segundo olhar. Não quando ele olha a imagem, mas quando ele a vê.
Folha - Existe sempre essa saudade de um espectador ideal...
Muniz - Marshall McLuhan disse que a educação foi desenvolvida para proteger a sociedade contra o desenvolvimento das novas mídias. Isso é a pura verdade. Ele falava da profusão das imagens e da velocidade da tecnologia e da mídia.
Só hoje somos capazes de nos relacionar com uma mídia que foi criada há 6.000 anos.
Só agora a maioria das pessoas do mundo sabe ler. Isso dá uma idéia de como estamos atrasados.
As escolas não possuem uma educação da imagem. O que é a sintaxe de uma imagem? Como você divide uma imagem? Quais são as famílias de uma imagem?
O que parece nostálgico em relação a essas imagens aqui expostas é que elas denotam esse atraso.
A análise das imagens fotográficas foi bastante bem feita pelos surrealistas, como Man Ray... Até na Segunda Guerra, existia o interesse em destrinchar as propriedades da imagem fotográfica.
Foi a guerra que trouxe essa idéia de que as imagens eram transparentes.
As pessoas dependiam tanto de imagens naquele período que começaram a acreditar nessa versão: a idéia de que a imagem trazia consigo o fato.
Eu acho a fotografia jornalística importante, mas o desenvolvimento simultâneo de uma fotografia auto-analítica também é necessário.
Folha - O caminho inverso ao seu, ou seja, criar objetos a partir de imagens fotografadas, tem o mesmo efeito?
Muniz - No início de minha carreira, em 1987 ou 1988, eu fotografava coisas e mudava a aparência delas em relação à dimensão no espaço, com um tratamento mais escultural. Mas o resultado me colocava na posição de fotógrafo, o que não me deixa muito confortável.
Eu sou mais um artista plástico. Meu trabalho se relaciona muito mais com desenho, pintura e escultura que com fotografia.
O fato de o objeto final ser uma fotografia é apenas uma consequência. A fotografia ilustra todos os outros processos que fazem parte e me deixam à vontade em relação ao meu trabalho.

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