São Paulo, quinta-feira, 8 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A arte como tentação

MOACYR SCLIAR

Quando ela soube que um artista estava produzindo quadros feitos com açúcar e chocolate ficou entusiasmada. Jamais lhe ocorreria idéia tão original. Arte absolutamente insólita, feita, ademais, com coisas tão autenticamente brasileiras como o açúcar e o chocolate. Sem delongas, dirigiu-se à galeria de arte e adquiriu vários retratos feitos com a curiosa técnica.
De imediato, porém, teve problemas. Acontece que o marido era diabético e achou que aquilo era uma ofensa, para dizer o mínimo. Além disso, os quadros atraíram verdadeiros exércitos de formigas que a custo foram repelidas. Na iminência de um divórcio, ela optou por tirar os quadros de casa. Levou-os para o spa da qual era administradora e pendurou-os na grande sala de estar.
De novo, porém, surgiram problemas. Logo na primeira noite desapareceu um quadro, o que a deixou preocupada. O spa ficava num lugar afastado, como convém a pessoas que fazem dieta, mas contava com guarda permanente. Lugar seguro, portanto. Aliás, aquele era o primeiro roubo ali ocorrido. Talvez fosse um hóspede do próprio spa. Pessoas de fino gosto, alguma delas poderia ter caído na tentação de surrupiar uma obra. Discretamente, ela pediu à encarregada da limpeza que desse uma olhada nos apartamentos, nas malas inclusive. A mulher fez isto, mas nada encontrou. Mistério.
Um segundo quadro desapareceu e logo um terceiro. Indignada, ela decidiu: montaria guarda às obras de arte. Passaria as noites sem dormir, mas esclareceria o intrigante caso. Depois que todos se recolheram ela escondeu-se atrás de uma poltrona, na sala de estar, e ficou à espera. Não demorou muito e apareceu uma das hóspedes. Mulher imensa, de seus cento e cinquenta quilos, era conhecida pela resistência às dietas. Movendo-se com agilidade inesperada e usando uma lanterna elétrica, ela foi até a parede, retirou um dos quadros -feito com muito açúcar e muito chocolate- e pôs-se a comê-lo.
Na Bíblia, o profeta Ezequiel conta como recebeu do Senhor a missão profética: "Vi uma mão estendida e um livro sob forma de rolo... Ele me disse: Filho do Homem, come o que tens diante de ti. Come este rolo e vai falar à casa de Israel... Eu comi, e era doce como mel."
Açúcar, chocolate, mel. A arte e a profecia são melhores quando são doces. O problema são as calorias.

Texto Anterior: Posto é furtado na embaixada dos EUA
Próximo Texto: Avaliação do ensino médico
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.