São Paulo, quinta-feira, 8 de maio de 1997
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A Vale e o começo do fim do cesarismo

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Por mais que condenemos a violência, não podemos deixar de louvar a reação popular que a venda da Vale provocou. A cidadania, enterrada por esta estranha vocação brasileira para o cesarismo, parece ter sido enfim ressuscitada. E a opinião pública, conformada com um Congresso metamorfoseado em mercado de favores, onde a mais despudorada prática de trocas de benefícios entre o Executivo e parlamentares se torna regra moralmente aceita, talvez agora acorde de seu sono hipnótico.
Mas como pôde isso acontecer? O principal argumento da oposição para impedir a privatização da Vale é absurdo. Falou-se do valor estratégico de suas reservas. Mas que estratégia pode ser essa? Os mais ingênuos, os mais puros, acreditam que os minérios explorados possam ser usados para pressionar terceiros em concessões internacionais, concessões políticas, financeiras ou outras quaisquer. E de fato há dois exemplos históricos.
O primeiro foi com o estanho e o cobre, para a produção de bronze para uso militar. Os hititas entretanto, enterraram esta prática ao disseminar as técnicas de redução e forja do ferro no mundo antigo. O ferro é um metal democrático, abundante, distribuído quase igualmente pela superfície da Terra e acessível a todos. Assim, suplantou o bronze para aplicações militares. Desde então, nenhum país ou tribo pode fazer chantagem com suas riquezas naturais, até o advento da Opep, abençoada Opep.
De fato, nesse caso, após 3,5 mil anos de liberação universal, proporcionada pela indiscreta descoberta dos hititas, o mundo se viu subitamente servo de seu vício energético, o petróleo. Esse produto natural, esbanjado pela maioria dos países que dele dispunham inicialmente, estava concentrado em países árabes. Allah parece ser um Deus mais corporativista que Jeová. Todavia, esses são os dois únicos exemplos históricos de uso, e assim mesmo provisórios, de acesso privilegiado a recursos naturais por países ou tribo.
A interpretação equivocada do conceito de matéria-prima estratégica decorre talvez da prática exercida por alguns países de manter estoques estratégicos de minérios que não produzem e que são fornecidos por um número restrito de países. Os EUA, por exemplo, mantém um estratégico estoque de cristal de rocha, para usar como "semente" na produção de quartzo cristalino artificial, porque o Brasil é o único país que detém material dessa qualidade. Mas o Brasil não tem reserva estratégica de nióbio, apesar de fornecer 80% do óxido consumido globalmente, não só porque pode ser substituído por titânio e vanádio para muitas aplicações, como ainda porque têm o Canadá e o próprio EUA minérios aceitáveis.
No caso do minério do ferro, já houve, na década de 80, uma aliança de países fornecedores para melhorar o preço. O Brasil e o Canadá furaram o esquema. Tudo bem, cartéis para sustentar preços são tolerados até certo ponto, mas não com outras finalidades.
O mercado de minérios, de matérias-primas naturais, é caracterizado por excesso de oferta. Isso é evidente pelo fato de que, com a exceção da madeira, a partir do século 18, e das variações com os choques de petróleo, em 75 e 79, não há exemplo de aumento de preço de matéria-prima nos 4.000 anos de história econômica da humanidade.
Ou seja, a redução de teores e a extinção de jazidas geograficamente convenientes, que provocariam aumento de preço, têm sido suplantados sistematicamente pela redução de custos com novas tecnologias e pela eficiência de distribuição. E isso só ocorre quando preços são determinados por custos. Aliás, o sucesso da Vale não foi determinado fundamentalmente pela qualidade de minérios de Carajás, como muitos supõem, mas antes pela sua competência comercial, que inclui um eficiente sistema de vendas e transportes.
O valor estratégico de uma companhia pode ser avaliado de uma outra maneira, muito a gosto dos cientistas.
Dizemos que um órgão tem um valor essencial para um ser vivo se sua supressão compromete a existência desse ser. Assim, seria o fígado essencial, ou estratégico, para o homem, enquanto o apêndice não o seria. Se suprimíssemos a Vale, muito pouco seria alterado na vida econômica e social do Brasil. Muito mais relevante é o sistema elétrico. Sem ele, o país estaria comprometido. Pois bem, esse sistema está sendo privatizado, e ninguém se incomoda. O mesmo acontece com o complexo responsável pelas comunicações, cuja importância estratégica é muito maior.
Então, o que é que está acontecendo? Mineração, celulose, transporte, siderurgia, ou seja, o que faz a Vale, não são atividades econômicas estratégicas e são tradicionalmente assumidas, no mundo ocidental, pelo setor privado. De onde vem a comoção? Só há uma explicação. A Vale é suficientemente grande para justificar uma batalha ideológica. Não se trata de uma guerra contra a privatização, mas contra o cesarismo e o sabujismo fisiológico do Congresso. O Sivam, o primeiro ensaio, era técnico demais para esse campo de batalha. E o cesarismo venceu estrondosamente. A Vale é o segundo embate. Já está ficando mais difícil.

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