São Paulo, terça-feira, 13 de maio de 1997
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Melancólica lembrança

ANDRÉ LARA RESENDE

Estive fora. Acompanhei de longe o caso dos meninos que atearam fogo num índio em Brasília. Ao chegar, li na Ilustrada o artigo onde Marcelo Coelho comenta o incidente, segundo ele, com algum atraso. Volto, com atraso ainda maior, ao assunto.
Justifica-se, acredito, quebrar o imperativo jornalístico da ordem do dia para meditar um instante sobre algo que nele tem marcado presença insistente: a maldade.
A palavra anda em desuso, reconhece Marcelo Coelho. Recusamo-nos, de acordo com os cânones da modernidade, a admitir sua existência. Estamos sempre à procura de explicações. "Tentando entender" é o título do artigo de Marta Suplicy sobre o caso.
Segundo ela, o medo, o pânico ou a angústia provocam sensações próximas às da excitação sexual. Estimulados pelo cinema, pela televisão e pelos videogames, os jovens sairiam às ruas em busca de excitação parecida, em busca de sensação.
A proposta de Marta Suplicy para lidar com o problema é restringir a violência na TV a certos horários e a inclusão de direitos humanos e valores éticos no currículo escolar.
Marcelo Coelho concorda com o diagnóstico, mas discorda da terapia proposta. Segundo ele, se a excitação com a maldade e com a violência tem um fundo sexual, ensinar aos adolescentes que queimar pessoas vivas é um ato deplorável não resolve: quanto maior a condenação, mais excitante a aventura. Melhor seria, portanto, garantir-lhes o acesso ao sexo do que instrui-los sobre direitos humanos.
Tenho minhas dúvidas. Se talvez exista uma associação entre a repressão sexual e a perversidade, nem a educação moral e a censura são capazes de garantir uma geração de bons moços, nem a inclusão do direito ao sexo na Constituição implica necessariamente uma sociedade do bem. Até porque, em termos de repressão sexual, há que se reconhecer, não andamos lá muito severos.
A verdade é que o mundo moderno tem grande dificuldade para aceitar o mal como algo incapaz de ser erradicado. O mal existe, sim, mas só como algo contingencial, fruto de alguma distorção que precisamos compreender e corrigir. Continuamos sob a influência do otimismo iluminista: acreditamos caminhar em direção à reconciliação final de todas as coisas.
Na tradição cristã, o pecado original e o demônio rejeitam o caráter meramente contingencial do mal. Nem todo mal é eterno, nem toda miséria é inevitável, mas o pecado original e a impossibilidade de converter o demônio significam que há algo de incurável em nossa condição.
Admitir que o mal não pode ser de todo erradicado, que devemos lutar sem perspectiva de vitória definitiva, parece-me fundamental para a compreensão da condição humana.
É preciso reconhecer que nunca nos livraremos do sofrimento e manter a esperança; admitir que na luta pela vida seremos todos individualmente derrotados e não perder o ânimo. Aceitar nossa imperfeição é o único antídoto contra a intolerância e o fanatismo.
Quando adolescentes queimam vivo um pai de família pela excitação de fazê-lo, não há o que compreender: só a melancólica lembrança de nossa incurável miséria nos une, observadores, vítimas e agressores, em compaixão.

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