São Paulo, quarta-feira, 14 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O mau humor de Kasparov

MARIA ERCILIA

A vitória de Deep Blue contra Kasparov foi brutal e rápida. O russo se irritou, perdeu a calma e a classe -acusou a IBM de desonestidade, disse que a disputa não valia nada.
Chegou -ironia- a desconfiar que houvesse um ser humano ajudando o computador. O resultado do jogo de domingo deu um xeque-mate simbólico em algumas batalhas clássicas: russos contra americanos, talento individual contra a tecnologia, tradição contra novidade. Venceu o dinheiro, a tecnologia, o show de marketing da IBM. Final triste, o jogador cobrindo o rosto com as mãos, meio de cansaço e meio de vergonha.
A imagem de HAL jogando xadrez contra o astronauta em "2001" está grudada em nossas retinas desde os anos 70, como emblema da briga do cérebro humano e do chip.
Até hoje, o computador parecia não ameaçar essa coisa que não sabemos direito como funciona, e que chamamos de talento, imaginação, intuição. Subitamente parece que o processamento maciço de informações pode mimetizar lances de gênio. E agora?
A polêmica vem desde o primeiro jogo do russo e da máquina da IBM, em fevereiro de 96. O computador joga ou não joga xadrez? Consultar um banco de dados e tomar uma decisão baseada em cálculo estatístico é jogar xadrez? A verdade é que se sabe mais sobre o cérebro de Deep Blue -que processa 200 milhões de informações por segundo- que sobre o de Kasparov.
C.J. Tan, chefe de projeto de Deep Blue, disse que não se tratava de uma batalha do homem contra a máquina, mas da natureza -que fez Kasparov- contra o homem -que construiu Deep Blue. Sofisma puro... Dinheiro e técnica em quantidades esmagadoras derrotaram o jogador russo.
Para Kasparov, um talento que até hoje não tinha sido disputado, deve ter sido um golpe duríssimo. Um campeão se faz em boa parte de ascendência psicológica sobre o adversário, o que é totalmente inútil com uma máquina. Com ela não tem catimba, olhares, enrolação, jogo de nervos. E como Deep Blue não tem um estilo de jogo, nem aberturas preferidas, porque decide impessoalmente entre milhões de alternativas, a coisa se complica ainda mais.
Deep Blue é imprevisível. Aliás, Kasparov vinha se queixando de que a IBM não permitiu que ele olhasse os prints dos processos realizados pela máquina, para que ele entendesse como ela joga.
Disse que durante a partida se perdeu tentando compreender o que Deep Blue estava fazendo. Fez o que estava acostumado a fazer com outros jogadores: procurou fraquezas, traços de personalidade -onde não havia nada, só força bruta de cálculo.
Na segunda-feira, a IBM liberou os prints. Kasparov esmiuçou tudo e lançou um novo desafio à máquina. E agora seu arqui-rival, Karpov, resolveu também defender a humanidade contra Deep Blue.
Kasparov já deixou claro que não joga mais no circo da IBM. Com Deep Blue, só se for num campeonato normal. No fundo do seu mau humor de rei destronado, deve ter intuído que o show de Deep Blue só tem graça com ele. A única torcida do computador deve ter sido o time que o programou.
Não tem interesse algum ver Deep Blue ganhar. O que assistimos foi Kasparov perder. O rosto que ganhou os jornais foi o seu. Um computador pode dar um xeque-mate. Ganhar, perder, se humilhar e se redimir são dimensões totalmente fora de seu alcance.
Boa mesmo foi a da Susan Polgar, campeã feminina de xadrez, que também desafiou o computador: "Enquanto Deep Blue não ganhar de uma mulher, não se poderá dizer que venceu a humanidade."

E-mail: netvox@uol.com.br

Texto Anterior: Bodinus e Biber revivem
Próximo Texto: Spielberg volta com sequência de "Jurassic"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.